sábado, 31 de janeiro de 2015

A Centelha Pentelha

Ao mesmo tempo que as formas materiais dos seres vivos foram criadas, também foi o mesmo número de centelhas de vida. Não chegavam a ser almas, mas já tinham características próprias e desejos, e foram entrando nos corpos, dando vida e habitando o planeta Terra. Puderam escolher livremente o tipo e o sexo que habitariam, conforme a inclinação.
Todas as possibilidades estavam expostas como num zoológico, com informações sobre cada uma delas, facilitando o trabalho. Assim, as mais agressivas tornaram-se selvagens, as mais tranquilas, depois viriam a ser domesticadas, e assim por diante, conforme o temperamento. Eram dirigidas ao que escolhiam por ordem de chegada na "fila dos decididos". Algumas demoravam demais, e não conseguiam ser o que queriam, porque outra já tinha escolhido antes.
Foi o que aconteceu com a centelha de número 453, o personagem principal dessa estória. Para seu azar, era uma centelha muito da assanhada, e resolveu escolher baseada em sua futura vida sexual. Decidiu ser macho, pois que percebeu que no Reino Animal, via de regra, a fêmea trabalhava mais, e era preguiçosa. Mesmo não tendo assumido um corpo ainda, já era machista, também.
Assim, nenhum ser com a palavra "reprodução assexuada" lhe interessou, como a estrela marinha, por exemplo.
De cara, já descartou ser um cavalo-marinho, que fica grávido e dá a luz a até 500 cavalinhos. Achou exagero.
Também não quis ser um cisne, pássaro fiel a vida toda ("tédio", pensou, revirando os olhos), que cuida dos filhotes e constrói o ninho. João de Barro, o "pedreiro que pode ser corno", nem pensar!
Outras centelhas íam escolhendo com menos exigência, e a lista de opções rapidamente diminuía. Mas a 453 estava muito distraída, queria ter certeza de se dar bem.
Pensou na opção de fazer sexo com outros machos, ampliar as possibilidades, como as girafas, gaivotas, bisões, golfinhos, mas achou muito moderninho e teve medo que doesse. Ser girafa também implicaria em beber a urina da fêmea, ficou com nojinho. Não seria nenhum desses.
Hermafroditismo, ou mudar de sexo depois de um tempo, como o peixe palhaço até soou interessante, mas também não quis.
Queria ser macho, bem machão, com um membro enorme, que não deixasse dúvidas (nada de dimorfisno)! O do canguru era bifurcado, deveria ser uma delícia a penetração dupla, mas a aparência era esquisita. Não seria a maioria dos aquáticos, que tinham fecundação externa. Queria sentir o quentinho de dentro da fêmea, de preferência várias vezes e por um bom tempo. Nada de ser rato, que dá uma em até 3 míseros segundos. Também lêmur não seria, porque o coitado tinha um pseudopênis. Talvez uma baleia azul, que tem o maior do mundo... Ficou em dúvida. Decidiu olhar mais opções.
E a lista ía diminuindo...
Passou rapidinho da abelha para o próximo, porque leu que só a abelha rainha estaria disponível, e seu motivo de orgulho ainda por cima poderia quebrar dentro dela. Tremeu só de imaginar a cena.
Ficou entre ser um galo, para poder dar umas boas bicadas nos cangotes das galinhas, e ter um harém delas, um bug love, que faz sexo 56 horas seguidas, ou um leopardo, que pode se garantir por até 120 atos em 8 horas.
Interou-se de mais informações sobre algumas outras possibilidades, e decidiu ser um leopardo.
Porém, para seu azar, quando entrou na fila, só havia um ser vivo que ainda não tinha recebido sua centelha de vida: a viúva-negra macho. Suando frio, nossa querida 453 leu na descrição: "a fêmea pratica o canibalismo do macho, pós-coito".





sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Mulherão (número 2)

Dizem que quando a gente está para morrer, passa um filminho de retrospectiva na cabeça da gente. Pessoalmente, acho mais provável que a gente tenha aquela sensação de queda brusca da pressão arterial, como quando a gente levanta rápido e sente que vai desmaiar. A orelha deve esquentar, a vista escurecer e qualquer dor parar. Mas tudo bem. Depois que acontecer comigo, posto aqui no blog prá esclarecer prá vocês.
Mas, voltando ao assunto: se o tal filminho passa mesmo, com certeza a pessoa que mais vai aparecer no meu chama-se Luciana. A melhor amiga desde a adolescência. Com centenas de testemunhas para comprovar a veracidade da afirmação.
Entrou na minha vida igual a pimentinha que é. Entenda-se: ela numa esquina gritando os palavrões que conhecia, aos treze anos de idade, e eu na outra, com os meus, aos catorze. Não tínhamos ido com a cara uma da outra. Mas, graças a capacidade de perdão das duas e a uma bola de voleibol que ela ganhou de Natal (e graças a Deus!), demos chance e a amizade chegou, devagar, mas firme e forte.
Junto com a amiga, ganhei uma família. A Lu é a filha caçula de uma tropa de dez irmãos: Cida, Célia, Zé, Sueli, Heloísa, Júlia, Selma, Sandra, Denise, ela. Não necessariamente nessa ordem. Levei bem uns três anos para decorar todos os nomes e rostos, que são bem parecidos. Porém, elas têm temperamentos diferentes, aquela história dos dedos das... bom, nesse caso, duas mãos. Os dos maridos e filhos, levou mais uns dois anos, e a outra geração, eu nem tento decorar. Aguns deles já foram meus pacientes. Esses, conheço bem.
Seus pais são a dona Ida, dona-de-casa, católica fervorosa, uma senhora com noventa anos de idade, saúde de ferro, muita opinião e assuntos para conversar, e o seu Ângelo, veterano da Segunda Guerra Mundial, na qual, dizia ele, tinha aprendido a aplicar injeção, aplicando. Estava sempre com um neto no colo, caminhando pela calçada, e vivia nos contando es(his?)tórias que adorávamos. Quando eu estava na casa dele e a madrugada vinha chegando, eu e a Lu matraqueando sem previsão de término, ele chegava na porta e dizia: "Arlete, quer que eu arme a cama de mola prá você?" - era o recado bem dado dele. Hora de partir.
Das pessoas da minha idade que me influenciaram, com certeza, ela foi a mais importante. Dei sorte. Com essa família enorme, e, óbvio, pelo temperamento também, sua inteligência e maturidade emocional sempre foram admiráveis. A gente discutia algum assunto, ela sempre tentava se colocar no lugar de todos os envolvidos, num exercício de empatia, e me ensinou a fazer o mesmo. Tinha muita tolerância à diversidade de pessoas e opiniões, e, também toda a criancice/ousadia de adolescente, comum entre a gente. Todo tipo de assunto, sem exceçào, dividíamos. Todas as dúvidas, angústias, ansiedades, tristezas, alegrias, tudo!
Trocamos muitas cartas através dos Correios, em férias e quando eu mudei para fazer a faculdade. Teve uma hora que enjoei do sobrenome dela, e a cada vez mandava um diferente, tipo piada. O carteiro entregava rindo. Ela pedia cartas cada vez mais longas. Mas não retribuía o favor direito. E dava a desculpa de ter menos assunto.
Em algumas poucas coisas éramos diferentes. Ela comprava roupa e mostrava tudo prá mim, peça por peça, toda feliz. Eu era menos vaidosa e ela se sentia traída porque eu não fazia o mesmo. Ela tinha muito mais vontade de se casar, ter filhos, e eu era mais focada em me tornar médica. E, por ironia do destino, houve uma época da nossa vida adulta em que eu era dona-de-casa, enquanto a carreira dela, como farmacêutica, e sua formação acadêmica estavam de vento em popa, com pós graduação e tudo.
Ela é o tipo de mulher que consegue o que quer, e faz bem feito o que se propõe a fazer. Tem um bom relacionamento com as pessoas, usa política limpa quando necessário, promove eventos em prol da saúde da comunidade em nossa cidade, cursos para aperfeiçoamento dos colegas, e muito mais. Foi eleita Conselheira Regional do Conselho Regional de Farmácia - SP, com milhares de votos, e homenageada na Câmara de Vereadores. Tem um casamento de vinte e um anos e dois filhos adoráveis. "O céu é o limite", eu digo prá ela, com toda certeza do que falo.
E de vez em quando ainda resolve ser cupido para mim. Risos. A essa altura do campeonato!
"Você não é uma amiga, você é uma parte de mim", me disse uma vez. E eu sinto exatamente a mesma coisa em relação a ela. Somos arquivos ambulantes das histórias que vivemos, juntas e separadas. Nos escolhemos como irmãs, por afinidade, e o tempo não mudou essa decisão. Mesmo as fases em que estivemos mais distantes, geograficamente e em termos de realidade, não abalaram a amizade.
Até hoje, contamos uma com a outra para dividir momentos bons e ruins. Ela é sensível, sabe o que falar, dá opiniões sinceras e equilibradas, e a cumplicidade entre a gente é absurda. Não há julgamento, e, quando há, é feito com amor e boa intenção.
Vou à casa da dona Ida sempre que posso, aos sábados à tarde, me encontrar com as minhas outras irmãs adotivas. É uma farra! Se tem um bebê, ele passa de colo em colo. Elas são amorosas, divertidas, transparentes, acolhedoras. É, verdadeiramente, uma reunião em família, para mim. Uma das famílias que Deus me deu, com laços mais fortes do que qualquer DNA.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Ex

Quando deixei de trabalhar no setor de emergência de um hospital pequeno, no Alto da Lapa, às sextas à noite, minha amiga Fernanda assumiu o meu lugar. Era um plantão tranquilo, com casos simples, boa retaguarda, e os donos pagavam em dia, coisa que, para a maioria dos médicos, é raridade.
Depois de uns seis meses, apareceu, uma noite, um moço que a impressionou pela beleza física. Estava com amigdalite, nada de mais, segundo ela, foi prescrito o antibiótico. No dia seguinte, ela me encontrou e comentou sobre ele. Depois de uma semana, ele passou de novo pelo plantão, para "ver se tinha sarado", e ficou em consulta uns quarenta minutos, jogando conversa fora. Quando ela me contou, comecei a brincar, que ela tinha arrumado um admirador. Ela ficou sem graça, riu, disse que desconfiava que sim, gostava da ideia, mas talvez não fosse nada disso. Na outra sexta-feira, lá me aparece ele, dizendo que estava com... afta! Aí, nós fechamos o diagnóstico. Quem vai a um plantão médico por causa de afta?! Trocaram os números de telefone, e começaram a se falar todos os dias. Ele era engenheiro agrônomo, divorciado havia dezoito meses, sem filhos. Ela era um doce de pessoa, tímida, discreta, "moça prá casar".
O que não esperávamos era que, na outra semana, ela pegasse a ficha de uma paciente e reconhecesse o sobrenome dele. Era muito diferente, começava com CJZN, ela não sabia pronunciar, por isso tinha notado. E também pelo interesse, óbvio.
A mulher era uma morena muito bonita, alta, cheia de joias, impressionava e intimidava pelos atributos físicos. Fernanda se perguntou se talvez ela seria uma parente. Não parecia irmã dele, porque ele é um alemãozão, aloirado de olhos verdes. Mas logo ela não teve dúvida de que era a ex-mulher dele. Ela queixou-se de "batedeira". Fernanda a consultou normalmente, examinou, pediu um eletrocardiograma, que estava normal, e tentou ser o mais profissional possível. Mas ficou o tempo todo se perguntando se não era coincidência demais aquela situação. Se ela sabia de alguma coisa, e qual seria o intuito disso. Eles eram discretos, nem tinham saído, ainda. Será que a mulher o teria seguido, nas vezes em que ele esteve lá? Se sentiu meio paranóica, mas as coisas ficaram mais complicadas. No final do atendimento, a minha amiga a encaminhou para o ambulatório de cardiologia, para investigar melhor, e ela caiu aos prantos. Disse que tinha certeza que estava sentindo aquilo pelo nervoso de estar esperando pelo resultado de um exame de HIV. Que tinha se separado do marido havia tempo, mas continuava dormindo com ele, e sabia que era um galinha, estava com muito receio de que viesse positivo.
Fernanda me procurou na manhã seguinte, desnorteada. Das duas uma: ou a mulher estava falando a verdade, e ela poderia estar entrando numa grande enrascada, ou ela estava mentindo, e ela estaria entrando numa grande enrascada, do mesmo jeito!
Eu não soube ao certo o que dizer. Por um lado, ela mal conhecia o moço, estava interessada, mas não apaixonada, seria fácil desistir naquele ponto. Por outro, se a mulher estivesse manipulando a situação, seria muito injusto ela desistir, e a moça se dar bem. Mas ambas não conseguíamos acreditar que alguém faria uma maldade tão grande, inventar essa história sórdida, para sacanear o ex-marido. Difícil.
A pulga ficou atrás da orelha, e Fernanda desconversou, evitou o contato com Tiago (esse é o nome dele), deletou seus contatos, e tentou esquecê-lo. Mas, depois de dois meses, não resistiu. Encontrou-se com ele, colocou as cartas na mesa, a história toda, e escutou o lado dele. A ex-mulher era realmente obcecada, fazia questão de manter o sobrenome dele, apesar de tanto tempo passado, e já tinha inventado outras histórias. Por exemplo, assim que se divorciaram, disse que estava grávida. Na hora em que ele pediu o exame comprovando, deu entrada num hospital, dizendo que estava abortando. No final, era mentira, ela teve que confessar.
Novamente, Fernanda veio até mim, para ponderarmos a situação. Sentia-se muito atraída por ele, era um cara bacana, ela já estava com certa idade, querendo casar e engravidar logo, tinha muita dificuldade em gostar de alguém. Mas a bagagem que ele trazia para o relacionamento era pesadíssima. O que fazer?
Fiquei numa situação difícil. Quis dizer para ela "corra para as montanhas e não olhe para trás", mas e se ele fosse o grande amor da vida dela? (Sim, sou romântica neste ponto). Tentei lembrá-la das aulas de psiquiatria, de um distúrbio de personalidade chamado borderline, que aparentemente a tal tinha. Como ela trabalhava, tinha amigos, se dava bem com a família (pelo que Tiago contava), não achava que precisava de ajuda. Atribuía seu comportamento bizarro à paixão, e não se libertava do passado.
Fernanda pensou bem, seguiu seu coração (ou seja, "não pensou demais da conta", como ela diria), e vai se casar daqui a um mês, após dois anos de namoro com Tiago. Eles definitvamente se amam, combinam muito, não imaginam o futuro um sem o outro e não aguentam mais namorar e dar tchau quando o fim-de-semana termina. Tudo bonitinho. Ou quase tudo. Vão morar em Ribeirão Preto, a 290 quilômetros de São Paulo, graças às aprontadas da ex. Ele conseguiu mudar de emprego. Neste período, Fernanda teve que trocar de celular cinco vezes, para parar de receber mensagens e ameaças, e procurou a delegacia uma vez para prestar queixa contra "a doida" - como a chamamos, por maldade, mesmo. Ela causou um acidente automobilístico uma vez, e ligou do hospital para o Tiago, para que ele fosse visitá-la. Fora as várias "tentativas de suicídio", que nunca vingaram, porque ela sempre dava um jeito de alguém descobrir antes que ela levasse a cabo os planos. Fernanda tenta se manter neutra, deixá-lo tomar as decisões a respeito do assunto, e ambos fazem terapia, para segurar a barra. Rezamos para que um dia "a doida" perceba que também precisa de ajuda profissional. Ou se apaixone por outro, para ser problema de outras pessoas. Mas o ideal é o primeiro cenário, claro.
"Graças a Deus, eles não tiveram filhos" - é a frase que a minha amiga mais repete.
"Boa sorte, Fernandinha" - é a resposta que eu mais dou. Porque ela, com certeza, vai precisar!

Mulherão (número 1)

Eu adoro homens. Principalmente no que os diferencia de mim. A forma mais objetiva de encarar a vida, com menos drama, a agressividade (se for na medida certa), que geralmente eu não tenho, a barba (se tiver), os pelos do peito (se tiver uns brancos, melhor), a forma triangular do tronco... Epa! Não! Para tudo! Esse post é sobre mulher. Deixa eu me recompor.
...
Eu nasci e fui criada por uma amazona. Das que lideram, resolvem, fincam pé, brigam, esperneiam, levantam o nariz e seguem em frente, com as consequências do que escolheram. Incansável, íntegra, honesta, trabalhadora, cheia de boas intenções, que nem sempre se concretizam, porque, afinal de contas, todo ser humano tem suas limitações. Mas alguém que nunca passa em branco. Ame ou odeie, dificilmente alguém não percebe a sua presença.
Talvez por isso, por gostar tanto dessa presença marcante, interagir com ela e ser beneficiada tão ricamente, eu sou atraída e atraio mulheres deste tipo de temperamento forte. E elas borboleteiam em volta de mim, entram e saem da minha vida em várias situações, ao longo de décadas, agora que eu já vivi algumas.
Existe uma lista grande, que inclui as minhas madrinhas de batismo e crisma, tia materna, algumas tias-avós, tias paternas e amigas. Eu reconheço em mim traços e lições que recebi delas, e sei de algumas diferenças, que nunca atrapalharam o bom relacionamento. A maioria tem mais idade que eu.
Hoje, escolhi falar da Vani.
Primeiramente, ela impressiona pela aparência física. Muito bonita! Alta, esguia, olhos azuis esverdeados, bem juntos, rosto alongado, nariz aquilino, beleza europeia. Veste-se bem, e mesmo casual, demonstra bom gosto.
Nos conhecemos quando eu tinha onze anos, meus pais tinham acabado de se separar. Ela era amiga de uma amiga da minha mãe, e seu marido a ajudou com a pensão alimentícia. Tem duas filhas com idade perto da minha, e eu fui várias vezes na sua casa, brincar com um jogo de química, Ficávamos misturando os líquidos coloridos, enquanto os adultos conversavam.
Quando eu tinha quatorze anos, ela me chamou para trabalhar como berçarista, em sua escolinha e berçário. Na epoca, não existia esse nonsense bem-intencionado de trabalho infantil, e eu já estava escolada em cuidar dos meus dois irmãos.
Houve o benefício óbvio de eu ter um salário e amenizar as contas da casa, mas a convivência com ela foi maravilhosa. Lembro-me de várias histórias, muitos conselhos, mas principalmente o que sinto é gratidão.
Ela tolerava o meu topete de adolescente, e sempre escutava tudo o que fosse dito, do começo ao fim, sem interromper e sem mudar a expressão facial, por mais que não concordasse. Respondia com palavras educadas e sabia que para eu acatar, tinha que fazer sentido. E, obviamente, sempre fazia. Ela era ótima administradora. Uma vez, me deu um presta-atenção, porque percebeu que uma outra professora da escola estava me manipulando, para eu ser a porta-voz de seus interesses, mas não assumia, na frente da Vani.
Outra situação interessante foi um amor imenso que eu senti por um dos aluninhos, e ele por mim. Por algum motivo, a gente se apegou muito. Ele me chamava de mãe, e às vezes eu ía na van com ele entregá-lo em casa, só para ficar junto mais tempo. Eu gostava dos pais e eles gostavam de mim, e do que estava acontecendo, aparentemente. As outras crianças percebiam, mas não tinham ciúmes. Porém, um dia, a Vani me chamou para uma conversa, porque estava sendo muito difícil para o menino ir embora. Ela pediu que quando os pais viessem buscá-lo, eu deixasse outra professora levá-lo ao portão. Explicou que muitas mães se sentem culpadas em deixar o filho na escolinha, e talvez fosse um peso a mais sentir que o filho estava tão agarrado com uma outra pessoa. Ela não queria arriscar que isso acontecesse. Não tenho como não admirar uma pessoa dessas. A atenção com os detalhes, o cuidado com o lado emocional dos outros, o aconchego, a dedicação... Não tem preço!
Várias vezes eu a via curtindo as crianças. Sentava-se no chão para brincar com elas, umas três de uma vez, com aqueles braços longos, que alcançavam qualquer um que tentasse lhe escapar do abraço, rindo.
Eu sei que cuidava de mim, também. Ficava acompanhando a minha vida amorosa, aconselhava, sabia que o meu caminho era os estudos, e que a minha mãe contava com a influência (boa) dela sobre mim.
Na época da matrícula do terceiro colegial, a minha mãe adoeceu, caiu de cama e eu me vi sem um adulto para fazer a minha matrícula. Ela nem piscou. Recolheu os meus documentos, falou com o padre, explicou a situação. Ele me deu uma bolsa de estudos integral, ela assinou com responsável por mim, e comprou o material escolar.
Deixei de trabalhar na escolinha, quando passei a fazer cursinho à noite, e a escola, de manhã. Ficou muito cansativo.
No dia em que soubemos que eu passei no Vestibular, minha mãe e eu a procuramos. Ela vibrou! Disse que, coincidentemente, tinha sonhado com um amigo de infância, a noite toda, e ele era médico em Santos, onde eu estudaria. Só podia ser um sinal! Me mudei para lá com uma carta dela me apresentando para ele, uma pessoa incrível, também, que me apadrinhou em vários sentidos e me ajudou a me formar. Coincidentemente, ele tem duas filhas, com os mesmos nomes das filhas dela. Amo as quatro como irmãs, por extensão ao amor que tenho pelos dois.
Ela esteve na minha formatura, no meu casamento, e a gente se vê de vez em quando para um café. Conversar com ela me ensina algo, toda santa vez. Atualmente, ela me orienta a criar adolescentes.
Eu sinto que recebi e recebo muito mais dela do que ela de mim. Então, só posso acreditar que é uma bênção ter seu amor, e ela foi uma das pessoas que Deus enviou para mim como presente, quem sabe acertei em alguma coisa na vida passada, risos... Eu espero que um dia eu também seja leme, exemplo e bênção na vida de alguma pessoa mais novinha, além dos meus filhos. Porque aí as coisas boas vão sendo passadas prá frente, e a existência da Vani não beneficia apenas a mim, nesse sentido.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sofrimento

Estou envolvida com a Medicina há vinte e oito anos, desde que entrei na faculdade, aos dezesseis. Como aluna, interna, médica, paciente, acompanhante de paciente, estagiária, pesquisadora, técnica de métodos diagnósticos, observadora ou qualquer outra função, nunca consegui ficar mais de duas semanas sem pisar num hospital. Assim, vi muitas histórias de superação do sofrimento, como não podia deixar de ser, e muitos tipos de reação a ele.
Mas foi por causa de um morcego que aprendi, uma vez, um modo lindo de fazer as pazes com o mesmo.
Tem gente que extrapola as cinco fases fundamentais de luto de Kübler-Rose para qualquer sofrimento (ou mudança) inevitável, o que faz sentido, para mim. São elas: negação, raiva, negociação, depressão, aceitação. Não necessariamente nesta ordem, com duração variável, às vezes voltando para uma que já passou, e, geralmente com a aceitação no final (o que é desejável, saudável). É nesta que as pessoas administram o sentimento de maneira a sofrer menos, por meios diferentes. Alguns recorrem ao estilo Pollyanna ("tudo tem um lado bom, o jogo do contente"), à religião (karma, reencarnação, vontade de Deus, como exemplos, para haver um senso de justiça/explicação), aceitam por cansaço mesmo (já que não tem outra opção, e o tempo ameniza), e outras.
Voltemos ao morcego. Uma noite, há quatro anos, um entrou no meu apartamento. Me acordou, pousando na minha coxa (e o desgraçado nem tinha pago um jantar, e nem mandou flores no dia seguinte!). A minha filha estava do meu lado, na cama, conclusão: vacina e soro anti-rábico para as duas!
Eu estava no Posto de Saúde para tomar o tal soro. Foi administrado por uma enfermeira, com a qual eu já tinha tido contato num momento muito difícil emocionalmente, antes. Não diria que éramos amigas, mas havia uma proximidade entre a gente, por essa razão. Para esse soro, ela pegou um acesso venoso (para medicação, caso eu apresentasse alergia ou choque anafilático), colocou um pouco dele no meu antebraço, para ver se havia reação local, e depois dividiu o resto da dose entre as duas coxas. Talvez por fazer musculação na época, o líquido entrou rasgando, doeu demais, mesmo, e as lágrimas começaram a rolar. Percebi que ela foi pega de surpresa. Talvez me visse como mais forte, pelo meu comportamento prévio. Segurou a minha mão e me perguntou o que estava acontecendo. Expliquei que eu estava chorando em imaginar que a minha filha, com sete anos na época, tomaria quatro picadas e sentiria aquela dor, e isso estava cortando o meu coração. Acho que aflorou nela a empatia das mães. Ela começou a chorar, também.
E me contou a história do filho, que teve um grave e raro problema ortopédico, aos dezessete anos. Gostei, me distraiu da dor, e me deu uma lição de vida. Falou das várias cirurgias a que ele foi submetido, a insegurança quanto aos resultados, sessões dolorosas de fisoterapia, o custo, e quão ruim foi tudo ter acontecido naquela idade, com Vestibular acontecendo, perspectiva de entrar numa faculdade, e tudo o mais. Como foi difícil para ela ver o filho sofrer, e todas as fases pelas quais passou (bem parecidas com as de luto, mesmo), como mãe. Mas que por muito tempo se fixou na pergunta "por que eu?". Disse que percebeu que muito do sofrimento foi gerado por essa dúvida. Até um dado momento, em que olhou em volta, naquele ambiente nosocomial, com tanta gente passando por tanta coisa diferente, e teve uma mudança radical da pergunta: "e por que não eu?". Começou a se perguntar se, considerando-se que o sofrimento é parte da vida de todo o mundo, por que ela se sentia melhor do que os outros ali, por que ela achava que poderia acontecer com qualquer um, e com ela não. Me surpreendi. Eu, pessoalmente, nunca havia encarado dessa maneira. Eu também me colocava como vítima, na maioria das vezes. E achei muito válido, uma forma de aceitação muito bela. Se sentir parte da humanidade, com suas mazelas, dividir o preço de estar viva com outros seres humanos, que também experienciam coisas que não querem.
Mas, como o meu estilo é Pollyanna, mesmo: prá mim, esse foi o aspecto bom de ter entrado um morcego na minha casa. Tive a oportunidade de ouvir esse ponto de vista diferente, desse show de mulher.
Ah! Nem doeu tanto assim o soro, na minha filha. Ela disse que foi um três, numa escala de um a dez, de dor.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Nego

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
Me leva pro samba
Que eu vou me acabar

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
É coxa com coxa
Que eu quero é sambar

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
Me fala um gracejo
Que eu quero é ousar

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
Me tira o sossego
Que eu quero te amar

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
Me leva prá casa
Que eu vou te beijar

Vem cá, meu nego
Me faz um chamego
Me morde na nuca
Que eu quero é gozar

Vontade

Que vontade de estar com você!
Deixar o mundo lá fora,
Esquecer o horário,
Aabandonar o juízo,
Me perder em você...
Desmentir as decisões,
Os julgamentos, as ilusões,
E só variar as posições.
Te dar toda a atenção que você pede,
Matar a sede que cresceu ao longo dos anos.
Não saber onde você termina e eu começo,
De onde surgiu e para onde vai
Essa chama que adormece, mas não morre
Que me consome e me dá vida.
Que vontade de estar com você,
Sem hora prá acabar,
Sem destino prá alcançar,
Só estar com você,
Prá sempre...

Orquestra

Acordo cedo e procuro qual gato está dormindo nos meus pés. Acaricio, levanto, vou até o quartinho deles, troco a água, encho o potinho de comida, limpo a caixinha de areia.
A essa hora, a minha empregada provavelmente já está dentro do ônibus, vindo prá minha casa, para limpá-la e ficar com os meus filhos para eu trabalhar.
Tento, em vão, arrancar a minha filha da cama (já que é férias). Dou o remédio da manhã para o outro filho, que está tratando uma infecção na pele. Ele mal acorda, e diz "obrigado, love you", com voz de sono e de adulto. Nunca deixo de me assustar com a voz dele. E o tamanho.
Descendo no elevador, o zelador me chama no telefone e avisa que vai subir e verificar o vazamento da pia, ainda hoje. O porteiro está indo embora, o outro está chegando, e a segurança do prédio me dá paz de espírito para pensar em outras coisas.
Começo a minha rotina com os pacientes: pesar, medir altura e circunferência abdominal, fazer eletrocardiograma, orientar, pedir exames, fazer prescrições e encaminhamentos, etc. Ligo para um e outro para saber a quantas anda a marcação de um exame, da semana passada. A administradora e as secretárias me socorrem, quando o sistema falha, porque receberam mais treinamento do que eu, nisso. Deixo recado na caixa postal do colega cirurgião, pedindo que entre em contato para discutir um caso.
No meio da manhã, ligação para o restaurante, para mandar entregar o almoço, em casa. A dona dele me conta da filha, que vive às voltas com crises de sinusite e bronquite, mas vai bem, obrigada.
Antes de ir para casa, almoçar, passo na quitanda comprar salada e frutas, o maracujá prá minha menina, que não pode faltar. A moça me ajuda a escolher, porque não sou muito boa nisso.
Durante a tarde, troco umas mensagens no celular com gente que precisa em graus variáveis da minha atenção, ou se preocupa em graus variáveis, também, com algum assunto meu. Ou só pelo prazer de entrar em contato, mesmo. Tem gente tão querida nesta vida...
Telefonema diário para a minha mãe, sempre pronta a ajudar, e eu, vigiando as necessidades dela. E, claro, ela muito disposta a ouvir toda e qualquer novidade sobre os netos.
Terminada a jornada de trabalho, chego em casa, e a atenção é pros filhos. Fazer a janta (às vezes, porque às vezes, vai nuggets, mesmo!), escutar as estórias, assistir os vídeos que garimparam na Internet, ser interrompida em tudo o que eu tentar fazer no computador. Rir, se preocupar, educar, mandar tomar banho, mediar disputas, ou ficar na retaguarda, caso alguma surja.
Isso sem contar o que não é feito todo dia: levar ao oftalmologista, dentista, conversar com professoras/orientadoras educacionais, cuidados comigo mesma (caminhadas, salão, terapia). Delícia ter pessoas se dedicando a isso! Eu não conseguiria, jamais, dar conta de tudo, sozinha.
Lembro de uma estória que li no Facebook, uma vez, que dizia que havia um caldeirão de comida, com pessoas em volta, com colheres de cabo muito comprido, que não tinham como ser usadas para si próprias. Que a solução, foi, então, cada pessoa alimentar a outra, cuja boca a colher alcançava, e assim, ninguém passava fome. Acho que é por aí. Como uma orquestra: cada um com seu talento e instrumento, fazendo a sua parte.
É óbvio que sempre tem um folgado que não está tocando, ou está contribuindo pessimamente para o resultado final, mas dificilmente desmerece os outros esforçados. Ou, pelo menos, não chega a atrapalhar o meu dia-a-dia.
Gosto de olhar para os que se dedicam a uma profissão, gostando ou não do que fazem, seja pelo dinheiro ou qualquer outra razão, mas fazem diferença no mundo. Embelezam, facilitam, lubrificam as engrenagens, dão sensação de segurança, acolhem, consertam, julgam, punem, organizam, entretêm, cuidam, transportam, abastecem, servem, criam, e tudo o mais que justifique a existência.
E assim, vou curtindo a minha rotina, porque, graças a Deus, eu toco o meu instrumento preferido!

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Viagem

Em que ponto do Universo
A minha loucura cruzará com a sua
E finalmente saberemos
Qual é a mais intensa?
Você quer, eu escapo
Eu chamo, você não vem.

Está no seu mapa astral
Ou no meu horóscopo chinês
Uma explicação razoável
Para tanto querer
Numa troca de olhares?

O que o futuro nos reserva?
Ideias, vontades tão intensas...
Promissoras...
Mas nebulosas...

Não.
Palavra errada.
Nebulosas já foram estrelas
Geradas em reações nucleares
Já explodiram em luz.
Nós, não.

Somos corpos celestes à deriva
Sem bússola
Numa galáxia espiral.

Talvez seja este o destino:
Tornar-se poeira cósmica
Energia criada no vácuo
E sugada por um buraco negro.
E não se falará mais nisso.

Terapia

Na minha família, são muito raros os casos de doença cardíaca. Tanto do lado paterno, como materno, não houve muitos infartos, mortes súbitas, e mesmo a hipertensão ("pressão alta") é de baixa incidência. Em compensação, casos de câncer (nos mais variados órgãos) e doenças psiquiátricas (das mais variadas, também, e graus) existem para encher compêndios de Medicina.
Não me preocupo com o câncer, porque tenho confiança de que saberia reconhecer a maioria dos sintomas que eu possa ter, mas a doença psiquiátrica sempre foi pessoalmente temida. Porque não estudei muito essa área, e a linha entre o normal e o patológico, nela, é mais difícil de ser demarcada. Imagino que até para os profissionais da área deva ser algo difícil, em alguns casos.
Por exemplo, aquela paixão de tirar o fôlego, em que você pensa na pessoa da hora que acorda até a hora que fecha os olhos para dormir, a sua mania de lavar as mãos, ou seu desejo de se exercitar até desenhar os músculos já viraram transtornos obsessivos compulsivos? Essa tristeza sem explicação, vontade de não levantar da cama já pode ser rotulada como depressão? A pessoa vai prá Vegas e perde mais dinheiro do que deveria, Está em fase de mania, numa doença bipolar? Tem comportamentos que são claramente "sair da casinha", mas tem coisa que é questionável. Tem gente que é só esquisitona, não esquizoide ou esquizofrênica. Eu nem me atrevo a diagnosticar... Deixo para os psiquiatras, mesmo.
É diferente de dor física. Dor é dor, não é normal a pessoa subir uma ladeira e sentir um aperto no peito. Então, prá mim, é muito mais fácil rotular e tratar de doenças do corpo, do que da alma. Por inclinação, escolha, treino e dedicação, esta é a minha praia. Claro que a gente vê o paciente como um todo, tenta levar em consideração o aspecto emocional da doença, etc. Mas eu gosto de prescrever medicação/encaminhar para cirugia, quando bem indicada, mais do que tratar na base de comunicação verbal. Os resultados são mais imediatos.
Então, devido ao histórico da família, sempre me vigiei. Principalmente na fase dos filhos bebês, com a privação de sono, o medo da depressão pós-parto foi muito real. Mas era só dormir que os sintomas passavam, então fui tranquilizada pela minha mãe a respeito.
Eu tinha um preconceito grande quanto à psicoterapia. Achava que "terapia" implicava "tratamento", e que, então, seria indicada para pessoas com doenças/distúrbios/desajustes. Como, de uma maneira geral, sempre me senti equilibradinha, passando pelos problemas e situações da vida sem maiores traumas, apesar de alguns terem sido bem pesados, nunca me vi frequentando uma.
Porém, após o divórcio, encarando uma situação não esperada, uma grande amiga minha me sugeriu que eu fosse, e outra me indicou uma psicóloga. Uma das melhores coisas que me aconteceram nesse processo doloroso todo, e um dos melhores investimentos que já fiz e ainda faço!
Os benefícios que a psicoterapia trazem são inúmeros! Eu tinha a ideia de que seria alguém prá desabafar, algo não muito diferente do que o que a gente faz com amigos. Isso acontece, sim, mas não para por aí. A psicóloga escuta, sumariza, interpreta, dá a opinião dela (que às vezes é um ponto de vista que você sequer considerou), (raramente) sugere uma estratégia, uma solução, conduz a sua linha de raciocínio, alinhava as suas palavras, desembaraça as suas ideias, desafia, assegura que o que você está sentindo é normal/válido/esperado (se for), demonstra preocupação se não for, encaminha ao psiquiatra se necessário... e muito mais. Na maioria das vezes, você está passando por uma experiência que para você é única, ou a primeira vez, mas ela geralmente já viu vários casos parecidos, estudou muito das teorias a respeito do comportamento humano, tem muito mais segurança. Mesmo porque não está com aquela inundação de sentimentos (muitas vezes contraditórios), ou seja, no meio do furacão, como você. E, o mais lindo: se você não está preparado para perceber o que para ela é óbvio, por ser profissional e estar vendo de fora, ela espera você chegar lá. E o conduz de uma maneira amorosa e paciente, lidando com a sua reação quando você enxergar (o que às vezes você evitou com todas as forças, inconscientemente).
Bem, só fazendo para saber do que eu estou falando. Ajuda muito. Mesmo.
Um amigo meu me disse que não confia em terapia, porque acha que ninguém é tão equilibrado a ponto de poder ajudar outra pessoa em questões emocionais. Discordo completamente. Eu trato de uma enxaqueca crônica, e isso não me impede de tratar uma angina pectoris de um paciente. Ninguém é totalmente saudável, nem fisica, nem emocionalmente. Isso não é premissa para ser um bom profissional da saúde. Todo mundo tem seus traumas, assuntos mal resolvidos, em graus diferentes de boa ou má administração. Concordo que, pelo tipo de troca que existe entre psicólogos/psiquiatras e seus pacientes, talvez eles tenham, também, que fazer terapia, se vigiar, manter a estabilidade emocional para poder trabalhar melhor. Mas qual profissão não precisa disso?
Acredito que todas as pessoas deveriam se dar a chance de experimentar a psicoterapia, num momento em que sentissem a necessidade. Existem coisas que não se consegue enfrentar sozinho. Não conheço ninguém que tenha tido a experiência, com um bom profissional, e não tenha se encantado. Independente de diagnóstico médico, ou não. Que profissão linda! A pessoa certa na área certa sempre é uma felicidade, mas, na área da saúde, convenhamos, é uma bênção prá quem se serve dela.

OBS: com um abraço carinhoso para Yvogmar Palauro, Adriana Tabai e Jussieu Siqueira

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Maternidade

Faço parte de um grupo de mulheres sortudas, que tiveram quantos filhos quiseram, logo após decidirem.
Bem, a terceira não foi exatamente planejada. Foi, na verdade "sem querer querendo". Não nos precavimos para evitar, nem de maneira definitiva, e nem na hora H. Quando ela estava com 3 meses, em mais uma noite sem dormir, tive uma crise de choro, que não deixou dúvida de que era hora de parar. Definitivamente. Então, providências foram tomadas para que não "viesse" mais nenhum, felizmente.
Quando solteira, por algum motivo, eu dizia que se Deus quisesse que eu tivesse três crianças, Ele me mandaria dois meninos, porque eu tentaria fazer uma menina. Duas meninas, ou um casal, e eu teria parado por ali. Dito e feito... Não sou sexista, tento criar os três de maneira parecida, com mais diferença em relação ao temperamento deles, do que ao sexo. Mas acho o vínculo mãe e filha sentido de maneira diferente do de mãe e filho. Ou, futuramente, mãe e nora. Principalmente quando eles tiverem família, e eu, meus netos. Sim, eu penso em tudo isso, e presto atenção nas experiências das minhas amigas mais chegadas, me imagino no lugar delas. Posso ser surpreendida, não vir a ser o que eu esperava, mas eu penso, sim.
Fui submetida a três bem indicadas cesáreas, e não me arrependo. Saí delas saudável, bem disposta, tirei de letra. Detesto a polêmica sobre cesárea e parto normal: o fato de não se confiar no médico quando ele indica a cirurgia (culpa dos maus profissionais e da mídia, na minha opinião), de que a maioria das gestantes não tem a informação necessária e realista sobre a escolha, o termo "violência obstétrica" e a praga supostamente jogada por Deus no livro do Gênesis. Acho que tornar-se mãe já é estresse suficiente para a mulher, para ela ainda por cima ter que decidir se vai pagar ou não pelo Pecado Original. Que horrível atrelar um momento tão especial da vida a um castigo! E não digam que isso não influencia. Pessoas cheias de maldade no coração vêem o sofrimento do parto normal, a dor, o suor frio, os gritos e gemidos, e pensam/falam: "na hora de abrir as pernas, gostou". Ou seja: castigo! Ué, mas o homem também ... Aliás, neste caso, se existe a certeza de que alguém gostou é a de que foi ele! Cadê o castigo dele?!
Enfim... No meu caso, se eu tivesse sido a Eva, a praga teria sido vinculada à amamentação, que foi um sofrimento bem prolongado, e pelo qual eu fiz questão de passar. Só não sei dizer em relação à intensidade da dor, porque nunca entrei nas fases finais do trabalho de parto, sem anestesia. Acredito que amamentar traz mais benefícios para a criança e a mãe do que o parto normal. Além do valor nutricional, anticorpos, evitar alergias e etc, forma aquele vínculo emocional delicioso... Favor não me mostrar estatísticas a respeito. Nem sei se existe este estudo comparativo, já que ambos devem ser estimulados pelos bons profissionais da saúde, mas essa foi a minha escolha, uma coisa não querendo compensar a outra, que fique claro. Tive a maioria das complicações que a mulher que amamenta tem. Mamilo rachado (e consequente sensação de choque elétrico durante o ato), monilíase (sapinho, em mim e no bebê, sarava em um, voltava no outro), mastites, múltiplas vezes. Fora a privação do sono crônica, que é uma das piores coisas pelas quais eu passei, porque deflagrava uma enxaqueca terrível. E nada de tomar medicação efetiva, já que estava amamentando.
Não me arrependo. Mas não enfio o dedo na cara das mães que saem da maternidade com fórmulas compradas. Cada mulher se doa para os filhos em extensão diferente. As escolhas são pessoais e vai ser assim para o resto da vida. Cada duplinha funciona de uma maneira. E mesmo, como mencionei acima, a relação da mãe com cada filho varia, conforme a necessidade específica da criança, de preferência.
Então, vai ter mãe que vai prestar muita atenção na dieta da criança, em ser livre de junk food, balanceada nutricionalmente, e não ligar dela soltar um palavrão aqui ou ali. Já outra vai ser vestida igual uma princesa, ter um jogo eletrônico de última geração, e estudar em escola pública. A outra vai estudar, fazer balé, natação e inglês, e ser atendida no SUS se precisar. E assim por diante.
A gente pode até achar que as prioridades estão erradas, que a mãe às vezes está prestando um desserviço para a criança (às vezes está, mesmo, pode dizer alguém que sabe melhor sobre o assunto), mas a mãe vai tomar decisões baseadas na própria bagagem, que é sempre tão diversa quanto é o ser humano.
O grande problema é quando a mãe se propõe a ser perfeita, ou se sente cobrada por isso. É difícil não querer tanto o bem do seu filho, e acabar criando uma ideia não realista das necessidades dele.
Eu mesma, normalmente, evito errar, obviamente, por ser médica e perfeccionista, mas tento aceitar minhas falhas como ser humano, de uma maneira geral. Mas, uma vez, a Beatriz rolou da cama, aos sete meses, e escorregou entre a beirada dela e o "chiqueirinho" que o Luis estava, coisa que eu não previ, e quase quebrou o nariz. Eu me lembro vividamente da sensação de culpa que senti, da dor no peito, o nó imenso na garganta, enquanto ela se submetia a uma tomografia computadorizada. Chorei muito. Foi um dos piores momentos da minha vida.
Assim, acredito que haja a necessidade de conscientizar as mães sobre aspectos importantes da gestação, parto, criação de filhos, mas também tem de haver tolerância para com as escolhas não convencionais, e pensar na mãe, também. Não criar mais neuras do que ela já carrega.
A mulher que não pode ter um parto normal não é menos mãe por isso. A que descongela um nugget de frango ou pede uma pizza no lugar do jantar de vez em quando não é uma desalmada. A que deixa o filho se emporcalhar na lama não está querendo que ele pegue uma verminose. A que escolhe não vacinar o filho não é uma criminosa que está querendo a volta da poliomielite.
Vamos com calma. Mães são seres humanos, também. E, de uma maneira geral, ela é o que o filho precisa, e provavelmente a pessoa que mais vai amá-lo, em toda a sua vida. Com todas as escolhas certas. E as erradas, também.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O Casal

Apaixonaram-se um pelo outro por serem parecidos fisicamente. Pode soar estranho, mas assim que foi. Se trombaram pela vida, olharam um para o outro, e era como se olhar no espelho, em sua própria versão, no gênero oposto. A mesma cor de olhos e cabelos, formato do rosto, os lábios mais carnudos do que se esperaria em gente caucasiana. Se encantaram, trocaram os números de telefone, e... a semelhança parou por aí. Mas nada impediria que se amassem, no final das contas.
Ela guardava cada centavo que tinha para o futuro e o tempo das vacas magras. Ele guardava tudo o que ganhava durante o ano inteiro, e torrava numa viagem, no final do ano.
Ele morria de ciúmes. Ela morria de rir disso.
Ela curtia teatro, cinema e se embebedar. Ele frequentava as casas dos amigos, acordava cedo e adorava cozinhar.
Ela tinha um medo infundado de tirar carteira de motorista. Ele tinha brevê de piloto de avião.
Ele tinha voltado a morar com a mãe, depois do divórcio. Ela comprou um celular e não deu o número para os pais.
Ela raramente trocava de óculos e não usava condicionador. Ele se desesperava a cada ruga nova e rezava pela descoberta da cura da calvície, antes mesmo que ela chegasse.
Ela sonhava com véu e grinalda, família e filhos. Ele tinha feito vasectomia, e não disse.
Ele lia uma história e pensava em contar prá ela, frisando a moral da mesma. Ela escutava uma música nova e não via a hora de "tirá-la" no violão prá tocar prá ele.
Ele gostava de ópera. Ela desfilava na escola de samba todo Carnaval.
Ela avisava que um dia teria que ir embora. Ele prometia, rindo, se suicidar, quando isso acontecesse.
Ela tinha marca de biquíni fio dental. Ele era experiente e tinha muito a ensinar.
Ela amava as pessoas e suas esquisitices, surpresas e golpes de sorte. Ele fazia questão de controlar o que pudesse da vida dos dois, e desconfiava de desconhecidos.
Ela falava como metralhadora quando nervosa. Ele nunca perdia a compostura.
Ela tinha doado um rim para um irmão. Ele lia para os idosos no asilo.
Ela admirava a maturidade dele. Ele queria ser corajoso como ela.
Ambos sabiam que não havia futuro para o relacionamento. Ele falava abertamente. Ela mudava de assunto.
Ele ficava com o rosto todo vermelho, com facilidade. Ela tinha resposta para tudo e vergonha de nada.
Ele acreditava que o destino estava impresso no DNA da gente. Ela acreditava que a disciplina levava à concretização de qualquer sonho.
Ela era a favor do aborto. Ele ía à missa todos os domingos.
Ele detestava as roupas dela. Ela não suportava o partido político dele.
Ela aprendeu a Dança do Ventre prá exibir prá ele. Ele não iria à praia de sunga nem morto!
Mas o dia da despedida chegou, como previsto, um golpe mais duro nele, do que nela.
Porque ela se entregou prá uma nova vida, outras companhias, e diferentes possibilidades. Ele ficou onde tudo lembrava ela. Então, depois de cinco meses, ele fez as malas e partiu em busca dela. Encontrou-a esperando por ele, apesar de tudo. Estão juntos e felizes até hoje, com dois filhos adotados.
Porque a estória é minha, e eu dou prá ela o final que eu quiser. Inclusive o da Disney. (Piscadinha).

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Talentos

Tive contato com algumas pessoas de outras áreas profissionais recentemente, o que me levou a pensar sobre a diversidade de talentos e posturas das pessoas. Que graças a Deus existe.
Por exemplo, não gosto de cozinhar. Vá lá, meus filhos não passam fome, eu até me viro, mas não me dá prazer. Admiro quem ganha a vida cozinhando, devota horas trabalhando num ambiente quente, uma atividade demorada, cujo prazer que proporciona dura tão pouco. Procura novos sabores, apresentações de prato, aromas, texturas, misturas.
Também o garçom que atende bem, faz o cliente se sentir especial, lista os pratos, dá palpite sobre vinhos, demonstra que nasceu para servir, e torna toda a experiência de comer fora melhor. Que paciência! Meus filhos me perguntam o que tem, eu respondo "comida!", já desestimulando a próxima vez. Detesto listar opções! "Abre a geladeira e vê o que tem!" combina mais comigo.
Conversei com policiais e um delegado sobre as atividades deles. Não conseguiria lidar com metade do que eles encontram, no dia-a-dia. Em sã consciência, evito pessoas que cometem crimes, saber a descrição dos mesmos, olhar a vítima (morta ou viva) e/ou o criminoso. Porque sei que isso me traria uma tremenda desestabilização emocional. Temer pela minha vida, a da minha família, me expor à violência... Não consigo imaginar salário que compense! Mas alguém tem que fazer, e felizmente há quem faça, sem entrar em depressão!
E o interessante foi eles dizerem que acham a minha vida como médica pior, e que não sabem como eu encaro certos aspectos do meu trabalho. Como a impotência diante da morte iminente, dar más notícias, a falta de recursos, e coisas assim. Eu não vejo tanta dificuldade nisso. Enquanto a pessoa está viva, ela merece estar vivendo o melhor possível. E eu vou fazer o que posso, com os recursos que tenho, e brigar pelos que não tenho. Simples assim. Eu escolho estar lá, com eles, nas horas difíceis, e sei que existe como minorizar o sofrimento, com ou sem medicação. Então, fico eu sem entender como eles conseguem, e admirando-os, e vice-versa.
E o que é tranquilo e prazeroso para mim soa estranho e difícil para eles, e vice-versa. E isso não tem preço! Reações, pontos de vista, formas de encarar a realidade bem divergentes.
E não só na hora da escolha profissional as diferenças se mostram e são bem-vindas. Tenho amigos engajados em atividades diversas, que são bandeiras hasteadas com fervor por um, e não dizem absolutamente nada para outro. Exemplos: anti-tabagismo, exercícios físicos, dieta sem glúten, preservação do meio ambiente, número de cesareanas/partos normais no Brasil, política, e por aí vai... O que leva uma pessoa a abraçar uma causa e não a outra, eu não sei. Talvez nem eles saibam. Mas tem assuntos que calam fundo no coração, e outros que são igual a filme de Sessão da Tarde: acabou e é esquecido imediatamente, Não passa pela cabeça até a gente encontrar aquele amigo de novo.
Mas é sempre bom ter descoberto qual tem tudo a ver, o que faz levantar da cama pela manhã valer a pena e coloca um sorriso no rosto, independente do salário ou do retorno concreto do investimento emocional.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Resgate

Lembranças boas do passado merecem ser resgatadas.
Que delícia achar uma música na Internet que não era ouvida há muito tempo! Você lembra o jeito que a dançava, os lugares em que tocava, as pessoas que faziam parte da sua vida na época.
Às vezes, é um perfume antigo que te lembra uma fase da vida, alguém, ou até mesmo a loja em que você o comprava. O preço, se era muito alto...
Comida, então, nem se fala... O bolo que a sua avó fazia nunca vai ser só aquele gostinho. Vai ser a parte das férias que você passava na casa dela, a mesa que ela punha, as canequinhas que cada neto usava, o jeito que ela chamava todo mundo pro lanche da tarde, as tias matracando, o cheirinho do café.
Você encontra, no fundo do armário, uma fantasia que não sobe nem pela sua coxa direita mais, e lembra daquele Carnaval: os preparativos, o baile, as músicas, a empolgação antes e durante, o cansaço gostoso depois.
Passar uma tarde olhando fotografias, de preferência com alguns que nelas estão, ou assitir a um vídeo de casamento, ou dos filhos quando eram crianças é fórmula certa para emoções fortes.
Um abençoado decide trazer o violão pro churrasco e começa a tocar as músicas de mil novecentos e bolinha, quando estávamos na casa dos vinte, prestando vestibular, tentando nos definir como adultos e formando opiniões. Aquelas sensações voltam, a gente lembra como as amizades e os amores se formaram, o porquê de não terem se perdido ao longo do tempo, e como viver era e continua sendo bom.
Mas eu gosto mesmo é de resgatar pessoas. Porque tudo pode ter mudado: a aparência física, as histórias, a saúde, as prioridades, o foco, a vitalidade, os planos, os sonhos e por aí vai, mas a essência fíca. A afinidade, a história que já se viveu (experienciada e sentida de maneira diferente, mas semelhante) estão ali. Não existe necessidade de conquista, tentativa de impressionar, cultivo. É só desfrutar do que já existe, sólido e palpável. Como olhar um jardim depois que as flores já desabrocharam. Você senta para um café, um almoço, um chopp, ou faz uma visita, e simplesmente comprova o quanto quer bem àquela pessoa, como estar juntos é prazeroso e acolhedor.
Existe uma ponte nos Estados Unidos, acho que a Golden Gate, que dizem que começa a ser pintada em uma margem no início do ano, e quando terminam, no final do ano, já está na hora de se fazer tudo de novo. Acho que se eu usasse todo o meu tempo livre para me dedicar às pessoas de quem eu gosto, e com quem tenho histórias para recordar, viveria situação parecida com a da ponte, porque muitas me obrigariam a viajar, para bem longe. Infelizmente, não é viável.
Então, nas oportunidades que surgem (ou que eu faço surgir), aproveito, abraço, beijo, converso, relembro, tiro fotos, crio novas lembranças para daqui a sabe-se lá quantos anos, e agradeço a Deus aquela quenturinha que dá no peito, que a gente chama de amor ao próximo (em suas mais variadas formas).

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Vovó

Eu não sei em que ponto da vida a Dona Filomena tinha decidido que já estava na idade de ser quem era, e aceita como tal. Ou se sempre tinha sido assim, meio sem noção. Porque eu a conheci na flor de seus 80 anos de idade, e ela não poderia ser mais indiferente à opinião de quem a escutava. E falava o que bem queria.
Conversei várias vezes com ela, aguardando o meu pseudonamoradinho se arrumar no final da tarde, para sair tomar um sorvete, ou situação parecida, e ao telefone. Ela me olhava desconfiada, nunca teve muita certeza do que acontecia entre nós, "meninos modernos", e vivia me aconselhando a não assumir compromisso muito jovem. "Veja bem, querida, como namorar é perda de tempo: Ana Rosa (a filha dela) namorou, namorou, namorou, e acabou casando com o último namorado que teve!" Ao que eu sorria, me perguntando se ela realmente não percebia o óbvio da afirmação.
Às vezes, entrávamos sozinhos, sem o seu conhecimento, no apartamento. Ele tinha feito uma cópia da chave às escondidas, porque ela tinha medo que um bandido o abordasse ao tentar entrar, como se o risco não fosse maior de acontecer com ela. Não prá fazer nenhuma sacanagem, pelo contrário. Pegávamos todas as latas de leite condensado, expiradas havia pelo menos quatro anos, em média, e trocávamos por latas novas, antes que ela percebesse. Uma vez, abrimos uma, e estava marrom escura, como se tivesse sido cozida em panela de pressão. Também trocávamos todas as outras latas, sacos de feijão, arroz, macarrão, o que achássemos vencido. Tínhamos o cuidado de ser a mesma marca, e comprar um produto que não tivesse validade muito prá frente, para não dar bandeira. Não podíamos arranhar o seu orgulho, de saber cuidar de si, sozinha, naquela idade. Mas, se ela tinha o produto, não achava necessidade alguma comprar outro igual no supermercado.
Ele quase não reclamava dela, a não ser pelo fato de usar sempre a mesma pasta de dente para dentes sensíveis, de gosto insuportável, salgada, e ficar com ele enquanto escovava os dentes, como se ele tivesse cinco anos de idade, para verificar a limpeza, depois. Desconfio que ele teve sorte em ser homem, porque ela não cerceou sua liberdade, como tinha feito com a pobre Ana Rosa e a Beatriz.
Uma vez, passei pela casa dela para sair com ele, e ela me olhou pela janela, saindo do carro, (talvez para ver se nos cumprimentávamos com um selinho? - sem chances, ele detestava demonstrações de afeto em público, apesar de todos os nossos amigos saberem que éramos um casal). No próximo telefonema: "Minha querida, aonde vocês foram ontem?" "Num barzinho, dona Filomena.""E por que você estava vestida daquele jeito?""Como assim? Saí direto da faculdade..." "Sem saia! Onde já se viu sair sem saia? Façamos o seguinte: deixa uma aqui em casa, que eu não quero que ninguém diga que a namoradinha do meu neto é brega!" Suspirei. Oitenta anos, né?
Em uma fase que andávamos brigados, perguntei a ela onde ele estava, ao telefone. Eu sabia que tinha viajado, só não sabia para onde. "Ele foi pro litoral, menina." "Litoral norte ou litoral sul?" Eu pude ouvir a impaciência dela, do outro lado: "litoral, menina, fica pro leste!"
Numa das nossas melhores fases, ele deu uma festa surpresa prá mim, na casa dela. Surpresa maior foi ela ter aceito aquele grupo de adolescentes bagunçando tudo, e inclusive aceitou que lavassem a louça para ela depois, coisa que nunca permitia, porque achava que só ela lavava facas sem cortar a esponja toda. Na hora do bolo, olhei deconfiada para as velinhas, olhei para ele, levantei as sombrancelhas, e ele fez que sim com a cabeça. Ela pareceu ter percebido: "olha, menina, as velinhas que eu guardo da época que os meus filhos eram crianças! Viu só? Quem guarda tem!" Fiz questão de escolher direitinho o meu pedaço de bolo, bem longe do centro do mesmo...
Mas a melhor foi quando o meu amorzinho foi para um Intercâmbio nos Estados Unidos. Liguei, toda chorosa para ela, que parecia estar tirando de letra a situação. Talvez, no fundo, até estivesse aliviada com a nossa separação. Nunca tinha engolido o fato de eu ser "do grupo de teatro", ao que torcia o nariz, como se isso manchasse a minha idoneidade, ou algo parecido. Não era casta suficiente para o neto dela, talvez? "Dona Filomena, a senhora já tem o endereço dele lá? Quero escrever uma carta" (Na época, não havia Internet). "Ai, não... mais uma?" Me ofendi. Como assim? Tinha muitas outras garotas pedindo o mesmo para ela? "Deixa prá lá, então", falei aborrecida e sem disfarçar, "não gosto de ser mais uma!""Ótimo!"- ela nem piscou - "agora você é menos uma!"