sábado, 28 de fevereiro de 2015

Striptease

Uma história da infância
O velório da avó
A cirurgia que foi tranquila
O amigo que se afastou
O estudo está puxado
O trabalho não paga bem
A gata no veterinário
A tua música preferida
O filme da tua vida
A alergia ao iodo
Os planos para o futuro
O teu maior medo
O prato que sabes cozinhar
O esporte que assistes sempre
A rotina diária
E entre uma tirada de roupa e outra
Vais me desnudando a tua alma...

Estranho

Ela me fazia perguntas pela Internet
Onde eu comprava as minhas roupas
A marca do meu batom
O perfume que eu passava
Eu estranhava
Não sou nenhuma propaganda de consumo
Mas me sentia homenageada
Depois de três anos, vim a saber
Que na verdade ela disputava
Não comigo, que nada fiz
Mas com uma fantasia maluca
Do louco do marido dela!

Se lembram da minha voz?

Quero você prá baixo em cachos
Teima em alcançar os céus
Está pensando que é antena?
Prá baixo do chuveiro
E um bom creme
Pra você aprender que
Quem manda aqui sou eu!

Joias

Encontrei os brincos que me destes
De presente de um ano de namoro
No fundo da gaveta
Na hora embalar o passado
Prá fazer a mudança
Me trouxe junto as frases
Tão batidas, tão clichês
Nas quais me agarrei
Com tanta esperança...
Estavam escuros, os infelizes
Mas foram clareando conforme
As lágrimas os banhavam
E pediam uma nova chance
Peguei uma flanelinha
Os enxuguei com carinho
Brilharam com alegria
E pronto!
Hora de reciclar o nosso amor...

Ortopédicos

O pai o levou ao doutor
Mandou fazer
Os sapatos horrorosos
Que o enchiam de dor
Ao resgate vem a vovó
Lhe arranca tudo
Os dedinhos respiram aliviados
Prontos prá tocar a areia
E o menino sorri
"Torture essa criança de novo,
Querido filho,
E vai ter comigo!"

Emboscados

A floresta é fresca
O sol entre as folhas
O cheiro é de verde
A música da natureza
Antes da fatalidade
Ela amamenta o cervinho
Com prazer
Tudo está calmo
E em seu lugar
O único instinto
É o da mãe
Cumprindo o dever
A pantera espreita
E sua barriga dói
Em três minutos
Um silêncio estranho
A tomará de surpresa
Antes que ela fuja do barulho
E voltará assustada
A tempo de vê-lo
Destroçar a carne
Do seu filhinho
Mas, neste momento
Ela se embebeda
Da felicidade dos inocentes

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Encerramento

Tento achar uma forma poética
Mas palavras belas
Me fogem ao pensamento
Já passou da hora
(E ambos sabemos)
De colocar um término
No que já acabou faz tempo...

Vida

Me perguntam como estou
Respondo
Vou vivendo aos poucos
Entre a poesia,
Minha loucura
E a dos outros...

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Águia

O amor finalmente
Fugiu do meu peito
Abriu asas e o céu ganhou
Como se nunca tivesse
Mesmo aceito
Fazer parte do que
Não conquistou
Gritei teu nome
Você não ouviu
Voou, voou, voou...

Dias e Noites

Tem dias que a gente
É solo com humus
Semente cai
Brota
Cresce
Verde broto
Floresce
Frutífera...
Tem noites que a gente
Murcha
Entristece
E a alma adormece
Lágrima não molha o solo
Rachado de seco
Desértico...

Visita ao Papai

O alívio de estar sem eles
A dor da saudade deles
Sei que vão me telefonar
Caso algo aconteça
Ser referência
É felicidade
Mas também sentença

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Espelho Meu

Bom dia, senhora.
Sim, ainda és a mais bela de todo o Reino.
Permita-me, com humildade, interromper a tua manhã.
E pedir um favor, em reconhecimento a tantos serviços prestados.
Há décadas, não tenho outra coisa no meu campo visual que não a senhora.
Valorizo teus melhores ângulos, reflito o brilho dos teus olhos.
Te entrego de bandeja a exaltação à tua simetria.
Tenho sido plano, sincero, servil, devotado e generoso.
Não que a tua grandeza me deixe outra alternativa.
Mas gostaria da tua opinião sobre mim.
Já notastes a minha nitidez, melhor do que a da maioria?
E a minha moldura, que linda que é?

"Cale a boca, espelho medíocre!
Se não estás a me responder,
Não é mais hora de te ouvir.
Tua função é ser objeto inexistente,
Apesar de existir."

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Molecagem

A paixão me chamou no portão
De casa para brincar
Me estendeu a mão
Mas puxou rápido
Quando tentei alcançar
Colocou o indicador entre os meus seios
Me deu um peteleco no nariz
Quando fui olhar
Saiu correndo
"Você não vai me pegar!"
Se escondeu atrás de uma árvore
Querendo me enganar
Cheguei bem devagarzinho
Com um paralelepípedo na mão
E mirei na cabeça!

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Vícios

A vida
Vivida
Em versos
Vicia
Vigia
E volta
A vingar
Revigorante
Revoltante
Vontade
De voar..

Concessões

Ela compra presente prá sogra
Ele tolera o cunhado
Ele pilota a churrasqueira
Ela faz o pudim que ele gosta
Ela transporta as crianças
Ele paga o cartão sem reclamar
Ele vai na happy hour
Ela traz a mãe todo domingo
Ela se cobre pros outros não verem
Ele não se despe prá mais nenhuma
Ele queria trocar o carro
Ela queria dar uma festa
Então viajaram, prá não ter briga
Ele finge que não olhou
Ela finge que não notou
Ela se cobre com frio
Porque ele liga o ar condicionado
Ele fica com as crianças
Prá ela poder dormir até mais tarde
Ela passa as camisas dele
Ele pede pizza prá tirá-la da cozinha
Ele lava a louça duas vezes por semana
Ela agradece profusamente
Enfrentam cada má fase
Esperando a boa voltar
E não é que a limonada
Acaba ficando docinha?

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Controle

Vai sair assim?
Com esse vestido
Esse decote
Esse rebolado?
Essa ambição
Essa loucura
Esse palavreado?

Vou sair, sim
Com esse olhar
Esses lábios
Essa verdade
Esse sonho
Essa sede
E espontaneidade
E espero não estejas mais aqui
Quando eu voltar

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Divórcio

O tédio foi chegando
Bem de fininho
O desamor deu a mão
E ajudou na subida
O respeito saiu pela porta dos fundos
Para não presenciar a cena
A indiferença jogou a corda
Que se enroscou nas vigas do teto
O ressentimento enrolou a outra ponta
No pescoço do sacramento
Ele fechou os olhos
E deu seu último suspiro
Só restou ao tesão novo chegar
E chutar o banquinho

Manipulação

Ele a oferece um compromisso
Pensando que é isso
O que ela quer
Esquece que não sabe fingir
Ser o que na verdade não é

Não sabe que ela já se preparou
Para isso, para aquilo
Para o que der e vier

"Querido, você só me serve
(Se servir)
Para aquelas noites
Em que quero ser fêmea
Além de mulher..."

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Em Vão

"Não me esquece"
"Não te esqueço"
São o pedido
E a promessa
Mais inúteis
Que conheço
Quando se chega a eles
Geralmente
Os envolvidos
E o romance
Já se tornaram
Há muito tempo
Inesquecíveis...

Exorcismo

Por favor
Venham ao meu socorro
Tronos, querubins e serafins
Com suas barrigas de verminoses
Cabelos vermelhos cacheadinhos
Mãos e pés gorduchos
Cheios de furinhos
Eu imploro
Me arranquem do peito
Triste eu choro
Esse desejo sem fim
Ata-me à cama se preciso for
Antes que ele nela se aconchegue
Ou eu morra de amor
Me tragam cruzes, água benta
Terços, cânticos e orações
Toda ajuda é benvinda
Nesse estado de aflíções
Me exorcisem
Me aliviem
Eu clamo
Me libertem o pensamento
Do homem que tanto eu amo
E mandem prender o Cupido
Imediatamente
Desta vez ele errou feio
E merece ser punido
Duramente

Baile

No meio da multidão
Aurora se perde

Máscara negra
Alegria inebriante

Canta, dança
Encanta e procura

Não quis pagar
O preço pelo amor
Abriu mão
Do doce Pierrot

Nunca quis
Frescor no verão
Teto garantido
Ou título de Madame

Preferia não ser sincera
E dane-se ser levada a mal...

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Apenas...

Jaleco branco, meu nome bordado
Estetoscópio pendurado
Quarenta e duas horas por semana
Sou uma mulher da ciência
Estatísticas, estudos randomizados
Probabilidades, resultados
Carimbo, passos a serem dados
Sem margem prá erro, sem devaneio
Criação ou improviso
Missão!

Segundo turno é com as crias
Educação, manutenção, alegria
Preocupação, trajetos, assessoria
Escolha!

Mas, no tempo que a mim pertence
Quando tudo se aquieta
Ah... me deixe...
A me distrair com os meus musos
Irreais, etéreos, intrusos
Impossíveis perfeições
Cruzam o meu caminho em carne e osso
Apenas prá causar a faísca da ideia
Mas cujas intensidades só existem
Provenientes da minha própria alma...
Arte!

Aquarela

"A inveja nunca é branca. É vermelha" - afirma a escritora Maria Balé.
"O monstro de olhos verdes é o ciúme." - me lembra a outra, Lourença Bella.
E, ao invés de dormir, estou eu a pensar nas cores...
O vermelho da paixão, do pare, do perigo. Da vergonha, do pudor e da raiva.
Roxo de inveja (ela, de novo!) ou de desejo.
Amarelo de fome, de doenca. Ou falso como num sorriso. Às vezes, cuidadoso e intuitivo.
Bege ou verde de susto.
Verde da imaturidade, do "siga em frente" sem pensar.
O azul da paz, do pensamento.
O branco também da paz, pureza, liberdade.
E a gente flutuando nesse arco-íris de emoções e experiências...
"Porque quanto mais colorido o prato, melhor."

Verdes

De longe
A raposa olhava as uvas
Escondidas debaixo da blusa
"Oi, moça"
"Oi, moço"
"Blá blá blá"
Conversa fiada
Não levará a nada
"Não estou interessada"
"Você nem é meu tipo mesmo..."
"OK, então..."
Risos...

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Amor Maior que Tudo

Nem preciso dizer que vou falar dos filhos, né?
Nunca esperei gostar tanto de ser mãe. Eu quis muito ter uma família, depois que me formei, e me empenhei em achar alguém legal que também quisesse. Que tivesse mais ou menos os mesmos valores que eu, que pudesse, enfim, formar um time comigo e colocar umas pessoinhas no mundo, prá gente cuidar. A cena do comercial de margarina. Achado o cara, fizemos dois de propósito e... opa! Mais uma! Felicidade geral!
Obviamente, durante a gravidez do primeiro, enquanto eu ainda tinha tempo em abundância para isso, li tudo o que pude a respeito do assunto - o que não corresponde a um milésimo do que se pode e precisa saber. A definição mais divertida e verdadeira que eu encontrei foi mais ou menos assim: "criar um filho é colocar na terra sementes de um saquinho sem a fotografia do que vai nascer". Muito certo, isso!
Há alguns clichês que não funcionam, porém. Sempre ouvi dizer que o filho do meio é o mais negligenciado. Não na minha família. O primeiro, um menino, é três anos e meio mais velho que o segundo, que é um ano e meio mais velho que a caçula. Esse "loiriquinho" se deu foi bem: toda vez que eu abraçava o mais velho, ele também pedia abraço. Toda vez que eu abraçava a mais nova, lá vinha ele pro abraço! Já o mais velho e a caçula não prestam muita atenção um no outro, inclusive hoje em dia. O do meio brinca com o mais velho quando é "jogo de homem", como bola e videogame, e brinca com a mais nova, quando são jogos para os quais o outro já é muito maduro. A cumplicidade dele com os outros dois é impressionante. Um tipo de amizade diferente com cada um.
O amor da gente, como mãe, acomoda qualquer tipo e (acredito) número de filhos. Como tenho três, acho família de dois filhos minúscula. Se tivesse quatro, provavelmente acharia três uma mixaria, e assim por diante.
Cada fase é um prazer e uma preocupação. Quando são bebês, o trabalho braçal é árduo, e ficar sem dormir direito pode ser excruciante, conforme a mulher. Eles também pegam bastante doencinha, e a gente é muito insegura. Esquece ser médica nessa hora. Se bobear é até pior, por excesso de conhecimento, do que pode complicar o quadro, por exemplo. No primeiro, a gente se pergunta se não precisaria esterilizar a água do banho. No segundo, já é bem mais tranquilo. A gente não põe no peito assim que chora. Ele que espere dar duas horas de intervalo! O terceiro é um passeio pelo parque! Ou pelo menos a minha foi, porque era muito tranquila. Às vezes, eu olhava assustada para trás, procurando-a na cadeirinha do carro, porque ela era tão quietinha, que eu achava que a tinha esquecido em algum lugar. Ela só me olhava e sorria atrás da chupeta.
Nunca esqueci filho em lugar nenhum. Mas levei o segundo para a escolinha sem sapato (ele entrou sozinho no carro eu não percebi). Uma vez o mais velho virou o carrinho do supermercado com o segundo no lugar de criança (sorte que o cinto estava bem preso). E uma vez, aos sete meses, a nenê rolou da cama e bateu o nariz, o que me causou o pior sentimento de culpa da minha vida.
Agora, na pré-adolescência e adolescência, a preocupação é outra. Orientar, vigiar, participar, ser motorista, impor limites e ver, afinal de contas, que tipo de plantinhas eles são. Procurar ajuda profissional, quando necessário. Médicos, psicólogos, orientadores educacionais, professores e até a motorista da van dão uma mão. Sem falar nos amadores experts, como avós, tios e amigos que se interessam pelos filhos da gente.
Nos Estados Unidos, eles dizem que é necessário um vilarejo para criar uma criança, e também acho essa uma grande verdade. Quando a gente gosta de alguém que também é mãe, esse amor, via de regra, se estende para os filhos dela, e a gente torce para que se tornem pessoas legais, da mesma forma que deseja para os nossos. Então, se for pedida uma opinião a respeito, darei com a melhor das intenções, e, não estando os pais por perto, o instinto acaba mandando vigiar e não deixar que nada ruim aconteça, até os pais chegarem.
Não vou começar a escrever aqui o porquê de gostar tanto de ser mãe, porque não vai caber, e provavelmente será um clichê atrás do outro. Mas, só prá resumir: o crescimento esiritual, a multiplicação da capacidade de amar que ocorre a uma pessoa quando ela dá a luz é algo que só vivendo para sentir. A sua vida não gira mais em torno de si mesmo. Suas prioridades todas mudam. Sua tolerância, seus medos, como você administra o seu tempo, suas finanças, tudo é alterado por aquele serzinho. Pelo menos no início da vida deles, o seu poder de fazê-los felizes é muito grande. Sentar no chão prá brincar com eles é celebrado como se você fosse uma rainha visitando os súditos! Além das gracinhas fora de hora, declarações de amor, piadas...
Existe o outro lado: aborrecimentos, confrontos, preocupações, doenças, etc, que não chegam a ofuscar o lado bom. Afinal de contas, são pessoas, que vieram de pessoas, não existe nem de perto qualquer expectativa de perfeição. Têm limites e defeitos, que a gente tolera e tenta ensinar como minimizar, e um a tolerar o outro, lidar com aquela característica indesejável.
Meus meninos me encantam todos os dias. São plantinhas lindas, flores e folhas desabrochando, que me dão muita alegria e orgulho. Expressam opiniões próprias, reagem de maneiras inesperadas, sentem e encaram algumas situações de formas que me deixam aliviada e surpresa. Uma aparadinha aqui, outra ali... E eu não posso fazer nada a não ser agradecer a Deus por esses três: inigualáveis, inconfundíveis, incomparáveis filhos maravilhosos!

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Menininha

Estavam na praia, a mãe e a Gabriela, aos três aninhos. O céu estava nublado, o dia não muito quente, mas, obviamente, a menina besuntada com protetor solar da ponta do dedão até a raiz do cabelo e usava um chapeuzinho. Uma sentada na cadeira, bem perto da água, e a outra na areia molhada, construindo um castelo.
- Está ficando bonito, mamãe? - perguntava, de vez em quando.
- Está... - e a mãe pensando em todos os detalhes funcionais das férias, que, aliás, mãe não tira.
E acabou ficando bonito e alto. Mais do que o esperado. A menina bateu palmas e dançou em volta, quando ficou pronto. Durante o resto do dia, não falou em outra coisa. Pediu prá ligar para a avó para contar sobre isso, e, à noite, antes de dormir, inventou uma estorinha para os pais sobre uma princesa que tinha um dragão de estimacão e morava naquele castelo. Disse que o dragão espantava as bruxas e os príncipes malvados que por lá passavam. Os adultos franziram as sombrancelhas.
- Existem príncipes malvados, Gabriela? - perguntou o pai.
- Alguns. Mas a maioria não é.
Se admiraram com a noção e o fato de ela usar a palavra "maioria". Mas a gente nunca sabe o que vai sair da boca das crianças, de qualquer maneira.
Na manhã seguinte, pediu prá ser levada de novo à praia, para ver o castelo. A mãe logo avisou que ele não estaria mais lá. Que provavelmente a água do mar já o tinha varrido, que essas coisas não ficam para sempre na areia. Mas ela teimou, e, como esperado teve uma crise de choro ao chegar. Partiu o coração da mãe, que a abraçou, enxugou suas lágrimas, e se perguntou o que o futuro a reservava. Quantos castelos ela construiria, que seriam levados pela água, desfeitos em segundos, após tanta dedicação? Teria ela sempre alguém que a amasse por perto, para consolá-la, amenizar o sofrimento? Não havia como prever. Daí, a mãe lembrou de um detalhe. Abriu a bolsa e mostrou uma foto que tirou com o celular, sem que ela percebesse, da cena linda do dia anterior. A menina parou de chorar e começou a sorrir.
- O meu castelo!
- Sim, filha, olha ele aqui! Era lindo, né?
- Você acha que eu consigo fazer outro igual, se eu tentar?
- Certeza que sim, filha,
- E outro amanhã, de novo?
Balançou a cabeça, afirmativamente. Aparentemente, já aceitara a realidade dos castelos de areia.
A menininha sentou-se e colocou as mãos à obra. A mãe enxugou uma lágrima. Quem dera tudo pudesse ser refeito com tanta facilidade, e todas as lágrimas secassem de olhar uma fotografia do que já existiu... De maneira geral, o efeito é o oposto.

Rótulos

Ambicioso, altivo, adorável
Boa pinta, beijoqueiro, bem dotado
Charmoso, cheiroso, conversador
Desejável, decidido, dedicado
Elegante, educado, encantador
Forte, firme, fugidio
Generoso, gostoso, galanteador
Interessante, inteligente, instigante
Jovial, justo, joia rara
Minucioso, macio, maravilhoso
Trabalhador, vencedor, vitorioso
Soa bem, hein, meninas?
Mas olhem mais de perto
E tenham cuidado
Apenas mais um...
Narcisista

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Começo

Ela vestiu a roupa branca, as luvas, o colete, o protetor de seios e repassou consigo mesma alguns dos movimentos e regras do esporte. Mas, como sempre, metade da mente se dedicava a um assunto, e a outra metade, a outro. Sentou-se no banco, no meio do vestiário, ao lado do florete e da máscara metálica, enquanto a aula não começava.
"Três assaltos, três minutos cada."
Três meses.
"Primeiro, cumprimentar com as armas".
Conheceram-se na inauguração do Setor de Odontologia da empresa. Ficaram amigos de cara, e logo estavam se comunicando todos os dias, por mensagens ou telefonemas. Sorrir e rir eram como respirar ao lado um do outro: inevitável e natural.
"Colocar as máscaras".
Ela soube, através de outras pessoas com quem trabalhavam, que ele estava noivo. Achou interessante que ele não usasse aliança, e nunca tivesse mencionado o fato. Já fazia tempo que a conversa não era mais apenas sobre pacientes.
"Frase d'arma: no caso de toque simultâneo, quem começou o ataque ganha o ponto."
Um dia, ela estava saindo do estacionamento e ele chegando, a pé. Ela já tinha notado o carro dele. Talvez tivesse ido até a banca, porque trazia uma revista debaixo do braço. Parou, abriu o vidro para cumprimentá-lo. Ele se inclinou prá frente:
- Boa tarde! - deu uma pausa - Mas você cheira bem, hein? - e deu-lhe um selinho. Ela ficou meio tonta, riu e foi embora.
"Marchar: movimento para a frente, calcanhar sempre toca o chão primeiro".
Continuaram as mensagens como se nada tivesse acontecido. Mas logo ela confessou que já não o via mais como amigo, e quando ele demorava para puxar assunto, ela sentia um vazio e ansiedade difíceis de se lidar. Ele desconversou.
"Romper: movimento para trás."
No final-de-semana seguinte, já tinham combinado, iriam ao Congresso Paulista, juntos. Ele pegaria carona com ela. Na véspera, à noite, ligou, com uma desculpa esfarrapada. Ela foi sozinha, e o evento perdeu o brilho. Tentou se concentrar no benefício de estar lá, cientificamente falando.
"Guarda: posição de defesa, entre um movimento de ataque e de defesa."
Ela voltou a conversar sobre assuntos profissionais, sem disfarçar a mudança. Quando as perguntas voltavam a ser pessoais, respondia secamente, e desligava o mais rápido possível, dando a desculpa de que o sinal estava ruim.
"Balestra: salto curto em direção ao adversário, na intenção da estocada (golpear com a ponta da arma), finalizado com o afundo, posição em que o braço armado fica estendido para a frente, o outro para trás, a perna direita dobrada à frente, e a outra, estendida para trás" - Achava o movimento mais lindo da esgrima.
Naquela tarde, ele telefonou e a convidou para jantar. Disse que precisavam conversar. Ela sorriu. Discussão de relacionamento? Que nem existir, existia? Não tinha havido nenhuma fofoca a respeito dele rompendo o noivado, nos últimos dias... Ficou curiosa e aceitou.
"Ataque por destaque: enganar o adversário, ameaçando tocar numa região do corpo, e tocando em outra."
Suspirou aliviada. Sentiu que já sabia o básico. Agora só faltava praticar.
A professora chegou, e enquanto ela se trocava, perguntou a quantas andava a paquera dela com o colega. Ela contou que jantaria com ele.
- Ah... então outra luta começa, quando acabar a daqui? - a outra se divertiu.
- Luta, não, professora. Jogo! E hoje é noite de xeque-mate! - deu uma piscadinha.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Família

Dona Carolina cozinhou desde cedinho o almoço para a família. Finalmente, conseguiria reunir os quatro filhos, inclusive as casadas, e os netos, para a Páscoa.
As mais velhas já tinham chegado na noite anterior, e ajudavam na cozinha. Os maridos estavam na sala, assistindo televisão e jogando conversa fora, com as três crianças, que brincavam de jogos de tabuleiro. O dia estava quente demais para ficar no quintal, então preferiram o ar condicionado.
O pai e o filho mais novo, de 23 anos, o único que morava com eles, e estava terminando a faculdade, tinham ido ao supermercado para uma compra de última hora.
A mãe estava contente e não se importava com a trabalheira. Todos estavam bem, saudáveis, os homens com bons empregos, as mulheres realizadas, e ela não sabia de brigas recentes entre eles. Sentia-se colhendo os frutos da grande dedicação à família.
Perto do meio-dia, o padre chegou, e logo depois a terceira filha, que estudava fora. Houve alegria, os abraços emocionados, o clima festivo de sempre.
O caçula foi buscar a namorada, que tinha arranjado fazia três meses. Dizia estar apaixonado, que ela era lindíssima e muito gente boa. Todos estavam curiosos. Ele nunca tinha trazido alguém para ser apresentada, e ela aparentemente era muito tímida, nunca deixava tirar uma fotografia.
Logo que o casal chegou, porem, instalou-se um clima estranho, sentido por todos os adultos, inclusive o padre. Só os pombinhos e dona Carolina não perceberam. Um olhava para o outro, discretamente, e fazia uma expressão de "você viu?". A conversa não fluía. Se alguém contava uma piada ou fazia uma gracinha, as risadas eram forçadas e desproporcionais. Todos tentavam relaxar, mas não conseguiam.
Dona Carolina e a moça, porém, pareciam velhas amigas. Conversaram o tempo todo, se entenderam, prometeram se adicionar no facebook. A visitante ajudou com a louça depois do almoço, que garantiu que estava delicioso. A mãe ficou satisfeita com o resultado e elogiou a escolha do filho. (Aliás, nunca tinha deixado de dar sua opinião em cada aspecto da vida dos filhos, doesse a quem doesse).
Distribuíram os ovos de chocolate, o café foi servido, o padre foi embora, e o moço levou a namorada para casa.
Quando voltou, notou as pessoas muito sérias, ressabiadas, como se tivessem algum segredo entre elas.
A irmã solteira cochichou para que eles fossem para fora conversar, sem que a mãe notasse. Ele estranhou. Parecia que ela tinha sido escolhida a dedo pelos outros para isso, porque tinham um histórico de serem muito apegados, mesmo.
Ela tentou, delicadamente, fazê-lo perceber que a semelhança física entre a moça e a mãe deles, bem como o temperamento, era muito grande. Quis saber se ele tinha percebido. Talvez fosse inconsciente, ela não entendia muito do assunto, mas ficou preocupada. A princípio, ele riu, falou que era um absurdo, que elas eram totalmente diferentes, nada a ver...
A irmã não se deu por rogada. Entrou, pegou uma foto do casamento da mãe, a máquina fotográfica, com fotos daquele almoço, e colocou as duas imagens próximas uma a outra. O moço foi pego de surpresa. Levantou as sombrancelhas, arregalou os olhos, colocou a mão sobre a boca. A semelhança era realmente inquestionável. Horrorizou-se!
Nunca mais a procurou e nem respondeu aos telefonemas e mensagens dela. A coitada nunca soube o porquê. (Ai, que dó!).


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Casual

Ele jogou o corpo do lado dela com força, de bruços, e ela esperou voltar ao normal, deitada de barriga para cima. Coração batendo rápido, respiração ofegante, sensação maravilhosa de saciedade, plena. Aos poucos, foi voltando a respirar pelo nariz, e os pensamentos foram tomando forma. Depois de alguns minutos, vieram à cabeça as frases de sempre que um dos dois falaria: "essa está entre as dez melhores", "chama o SAMU", "me leva prá UTI", "isso deveria dar cadeia" e qualquer outra bobagem assim.
Olhou para o lado e o examinou. Estava de olhos fechados, tranquilo, com o rosto excessivamente redondo virado para ela. Os cabelos escuríssimos, a orelha bem feitinha, o furinho no queixo. Olhou para as costas, raspadas "para suportar usar o terno", com os pelos já começando a crescer, um aqui e outro acolá brancos. Fechou os olhos para esperar o que ele ía fazer.
Passou mais um tempinho, e ele tocou sua canela com o pé, mostrando que não estava dormindo.
Ela abriu os olhos, viu o teto com espelho, e soltou:
- Posso te pedir um favor?
- Depois dessa, qualquer coisa... - respondeu, fazendo gracinha.
Ela o olhou bem nos olhos.
- Vira uma pizza?
Caíram na gargalhada.
- Acho que estamos na mesma página, coração! - Deu-lhe um beijo no rosto e foi para o banho.
Romance, ali, passou longe. Mas estiveram na mesma página por um ano. Para deleite de ambos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Dormir

O sono vem chegando
Pesando as pálpebras
Aquietando o coração
Exigindo o silêncio
Lentificando o pensamento
Pausa para o descanso
Hora de se entregar
Total e displicentemente
Corpo na cama
Lençóis cheirosos
Mente divagando
Ideias se embaralhando
Que gostoso parar de funcionar
Pulsam os ouvidos
A fronha fresquinha
Escutando a respiração
Lenta, lenta, lenta
Músculos amolecendo
Escuridão se aproximando
Bem vindo, Morfeu, meu amor...
ZZZZZZZZZZ...

Diferenças

Em uma aula de Psicologia Médica, o professor fez um exercício conosco que achei bastante interessante. Nos contou uma estória na seguinte linha: "uma mulher estava extremamente infeliz no casamento, e então começou a atravessar o rio, para visitar a mãe do outro lado, todos os dias. Apaixonou-se e tornou-se amante de um homem que morava lá. Mentia, então, para o marido, dizendo que visitaria a mãe, mas ficava com o homem, até o horário da última catraca voltar. Certa noite, perdeu a hora. Voltou para a casa dele, e pediu que a levasse de carro através da ponte, pois era muito perigosa, um lugar no qual havia muitas ocorrências de estupro. O homem, por medo de ser desmascarado pelo marido, se negou a ir. Disse que ela se arriscava a isso acontecer, que arcasse com as consequências. A mulher decidiu ir, mesmo assim, e foi estuprada e assassinada." De quem foi a culpa deste crime? Por quê? - eram as perguntas.
Não havia resposta certa, e a intenção era gerar debate e aprimorar a argumentação entre nós. E eu gosto pouco de uma polêmica...
Houve, então, quem colocasse a culpa na mulher. Era uma mulher casada, traindo o marido, se arriscou, perdendo a hora, indo sozinha pela ponte, deveria ter dormido na casa da mãe. Houve quem julgou o amante, porque foi um covarde, não a acompanhou para sua segurança, não demonstrou a menor consideração. Também houve quem responsabilizou o marido, porque se ele a estivesse fazendo feliz, ela não estaria indo buscar amor do outro lado do rio e se expondo ao perigo desse jeito. E houve gente que, taxativamente, falou que a culpa do crime era do criminoso, oras! Só não teve um "a culpa é do governo", mas chegamos perto, porque, afinal, ele não combate a criminalidade (alguém poderia argumentar). Percebi que o professor nos escutava e já ía chegando a uma opinião sobre nós, durante a aula. Um era mais expansivo, o outro mais tímido, um prático e direto ao ponto, o outro ponderado e detalhista, e assim por diante.
Não me canso de observar essas diferenças entre as pessoas. Em cada mínimo aspecto do comportamento. As escolhas, o que dá prazer, o que se evita, as proridades, o jeito de se posicionar em relação aos outros, ao mundo e a si mesmo... Impressionante!
Tem gente que tem prazer tipo "máquina de Coca-Cola". Vai lá, coloca o dinheiro, certeza que o refrigerante cai na abertura. Tem gente que prefere mil vezes uma máquina caça-níqueis. Coloca a moeda, gira a manivela, o gelinho na barriga, a expectativa do que vai acontecer. Tem gente que gosta de um meio-termo. Ou da primeira em certos assuntos, e da segunda, em outros. E a reação, caso a lata não caia? Pode-se suspirar em aborrecimento e colocar mais dinheiro (ou desistir de uma vez, a sede nem era tanta), ou ficar tão frustrado, chacoalhar e chegar a chutar a máquina de raiva. E, no caça-níqueis, existem aqueles que se propõem a perder uma certa quantia, que, atingida, acaba com a brincadeira. E outro que gasta muito mais do que planeja, na esperança de recuperar o que perdeu. Ou porque uma vez ganhou muito e quer ter aquela sensação de novo. Tem gente que já experimentou a sensação boa, parte para tentar a roleta, prá ver se é mais gostoso.
Mas, pensando bem, diferenças de temperamento existem até entre bichos. Tenho dois gatos da raça Pelo Curto Brasileiro (ou, vou no popular, vira-latas) que se comportam de maneira muito diferente entre si. A mais velha é uma lady, independente, carinhosa só quando quer, e sempre cede para o mais novo - o lugar, a vez de comer, o que o outro exigir, sem briga. O mais novinho nos segue igual a um cachorrinho, pela casa, mia com muito sofrimento quando se vê sozinho, mas não ronrona e não aceita carinho.
Ter consciência de tudo isso é importante para qualquer um, em qualquer relacionamento. Para tolerar ou decidir se afastar, se houver opção. Ou administrar da melhor maneira, se tiver que conviver, por força das circunstâncias. Mas é, em especial, para pessoas em cargos de chefia. E, inclusive nisso, as diferenças se mostram. Existem os que têm ambição de ocupar um cargo alto, mas, claramente, sem o menor talento para isso. Querem o status, o ganho financeiro, mas não levam em consideração a responsabilidade e dedicação que são exigidas. Não têm bom senso suficiente para liderar. O bom chefe, par começo de conversa, entende os talentos, valores e potenciais dos subordinados, e os distribui de acordo, de forma a aproveitar o melhor de cada um. Num mundo ideal. Claro.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Tsunami

E chegou a hora do adeus
Obrigada por quase tudo
Desculpe alguma coisa
Juro que eu tentei
Sei que tentaste também
Não sei o que fazer agora
Só sei que eu sobrevivi
A vida seguirá sem ti
E que nunca mais serei a mesma
Não vou voltar ao que era antes
Não quero mais o que eu queria
Quando eu te conheci
Porque eu já tive e foi lindo
Construído por nós dois
Mas cobrastes o teu preço
Digamos, então, que estamos quites
Não olhe para trás
E não procures
Reatar a amizade
Ou a menor civilidade
Porque te conheço demais
Prá baixar a guarda tão cedo
Segue teu rumo
Faça as pazes contigo mesmo
E me deixe em paz
Talvez o dia chegue
Em que o mar recue
O sentimento se transforme
A areia seque
O chão se torne firme
E eu repense a minha atitude
Mas não conte com isso
O tsunami foi catastrófico
O estrago foi grande
E não mereces mais uma chance
De estar perto do que arruinaste

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Inocência

Adoro formaturas e casamentos. Não conheço ninguém que não goste, nem que seja só pela festa. No primeiro, existe a sensação de realização, batalha vencida, etapa encerrada. No segundo, pode existir tudo isso, dependendo dos envolvidos, mas celebra-se também o amor entre duas pessoas. Claro, falando de uma maneira geral. Existem, infelizmente, as exceções. Situação parecida é a descoberta da primeira gravidez, mas geralmente não tem festa oficial.
Nestes três casos, há uma coisa em comum que é essencial: a esperança. O recém-formado, o recém-casado, e a futura mamãe vêem as coisas de maneira romântica, sem muita certeza do que está por vir. Os mais velhos sabem mais, e devem ficar quietos, nesta hora.
É detestável a atitude de certas pessoas, amarguradas com a vida, que, com boa ou má intenção, tentam mostrar a realidade da vida, e acabam por estragar um pouco (ou muito) a alegria do momento.
Antes de me casar, houve dois homens que me disseram "não faça isso!", e me deixaram com muita raiva. Não é o que a gente quer escutar. Houve também dois casais que eram muito felizes, celebraram a decisão e me deixaram feliz, também. Se eu tivesse escutado os dois primeiros, teria perdido a chance de quinze anos maravilhosos na vida, e três filhos melhores ainda!
Quando entrei na faculdade, encontrei uma médica que me disse que se pudesse voltar atrás, não faria esse curso. Que detestava estar entre desconhecidos ee dizer que era médica. Também perdeu a chance de ficar quieta. Hoje em dia, eu não tenho problema nenhum em dizer para qualquer pessoa que sou médica, e, pelo contrário, tenho orgulho e não faria outrs coisa na vida. Claro, quando vejo o carimbo de um colega, com o número de inscrição do CRM (Conselho Regional de Medicina) muito mais alto que o meu, penso "Nossa, que bebê... ainda vai se decepcionar muito com a profissão..." Mas, se eu o encontrar pessoalmente, não vou ficar reclamando dela, contando todos os podres, todas as limitações sociais e econômicas. Deixa que descubra sozinho... Cada um tem a sua experiência, quem sabe a dele será melhor que a minha?
Conheci uma mulher que, grávida da primeira filha, caiu na besteira de conversar com a mulher errada, e chorou muito por isso. Infeliz por ser mãe, a outra lamentava ter abandonado (ainda que temporariamente) a carreira, e desembestou a falar de assadura de fralda, vacinas, noites sem dormir, mamilos rachados... Prá quê?! Um colega do meu ex, descontente com os filhos adolescentes, deu "meus pêsames" para ele, quando contou da minha gravidez. Fim da picada! O que se quer alcançar fazendo isso?
Não tire a inocência da pessoa! Não distribua amargura! A sua não vai diminuir, dando uma má opinião para quem está para começar um caminho, que pode vir a ser bem melhor administrado que o seu!
A pessoa que está se formando tem mais é que achar que vai ser bem-sucedido, fazer diferença no mundo. A que se casa, que vai ser para sempre, que o amor é de verdade e melhor que o da maioria. A futura mamãe tem que ter a chance de só olhar o lado bom da maternidade, para que o amor nasça forte, e as dificuldades sejam superadas quando e se surgirem.
Deixem os esperançosos curtirem esse estado natural e feliz de boa vontade. Depois, se eles tiverem más experiências e quiserem conversar, aí, sim, troque experiências, para eles saberem que é difícil para todo mundo. Mas não contamine quem é puro de coração. Tem hora que a melhor coisa é calar a boca e comemorar como se não soubesse do outro lado da moeda.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Escolha

Recostada num sofá confortável, numa sala de dimensões amplas, na casa de seus pais, Ana cochilava com languidez. Naquela fase entre estar acordada e adormecida, sentiu que abandonava seu corpo, num sonho estranho, vívido, do qual se lembraria para sempre.
Entrou em uma adega, onde encontrou sua irmã, Maria, próxima a uma mesa retangular comprida, com quatro taças de vinho de cristal cheias pela metade.
- Hora de escolher, Ana. - E fez um gesto sinuoso apontando as taças com a palma da mão esquerda.
Ana aproximou-se, deu-lhe um beijo nos lábios, como era costume, desde crianças, e sentou-se numa cadeira. Maria sentou-se em sua frente, do outro lado da mesa.
Ela tomou a primeira taça, e sorriu para a irmã, que sorriu de volta.
- Descreve. - pediu Maria.
Ana fez o ritual de degustação do vinho, e repetiu com cada taça, posteriormente. Inspecionou a coloração, depois contra a luz, inalou, fez movimentos circulares com a taça e cheirou novamente, experimentou e bebeu, por final. Procurou pelas palavras certas.
Respondeu, para o primeiro:
- Esse é bem límpido... Vermelho rubi... Tem um cheiro animal. - Parou para pensar, olhou de novo, bebeu mais um pouco. - Doce, fresco e delgado.
E, imediatamente, lhe veio à mente a imagem do cuidador de cavalos. E sua voz: "Eu te amo, Ana. Quero te fazer feliz." Olhou assustada para a irmã, que levantou as sombrancelhas, como se também pudesse ouvir.
- Este vinho é de uma safra comum, irmã. Na verdade, todas esses garrafas da parede atrás de mim são dele.
Ela viu a quantidade delas acomodadas lá, às centenas, e imediatamente a bebida perdeu o seu valor. Assumiu um gosto de vulgaridade, de lugar-comum. Teve curiosidade em provar o próximo, num tom de vermelho violáceo muito mais bonito.
Repetiu as manobras. Obedeceu Maria, novamente, após saborear por um momento:
- Aspecto brilhante, lembra substâncias queimadas para o olfato, com um toque de canela, encorpado, mas um pouco áspero.
De novo, um rosto invadiu seu pensamento, e a voz que vinha dele: "Por você, abandono a minha batina, minha querida..." Devolveu rapidamente a taça ao seu lugar. Um sentimento de medo e culpa chegou, de pronto.
- Não fica assim, Ana. São apenas opções. O futuro está em suas mãos.
Partiu para o terceiro. O coração já disparava um pouco. Estava claramente sendo testada, e não o contrário. Era um pouco assustador que a irmã parecesse saber o que passava no seu íntimo, com tanta clareza.
Teve bastante dificuldade em descrever, por falta de características fortes. Esse era bem menos marcante. Mas um vinho raro, disse Maria. Ana quis experimentar, independentemente disso. Por algum motivo, tinha chamado mais a sua atenção do que os outros, logo que entrou no jogo.
- Vermelho tijolo, opaco, frutado... Açucarado, leve... Um tanto insípido pro meu gosto. É o...
Maria fez que sim com a cabeça.
- Sim. É o filho do Conde, Percy. Você sabe que ele está cedendo à chantagem do pai, e pensando em desisitir de você, não é?
Ana olhou para baixo e conteve uma lágrima. Aquele era o vinho do qual queria se embriagar. Previsível, de baixo teor alcoólico, sem sobressaltos ou ressaca, com uma pequena possibilidade de tédio acompanhando. Mas fraco, para alguém que conhecesse vinhos, como ela. Infelizmente.
Antes que Ana partisse para a última taça, Maria trouxe a garrafa. Jurou que era a única daquele tipo. Preciosíssima. Tirou a rolha, e Ana poderia jurar que viu uma fumacinha sair dela, e formar uma pequena caveira no ar. Pensou que talvez já estivesse bêbada. Maria suspirou, com os olhos fechados, e encheu um pouco mais.
- Agora, essa. - Pediu, sem disfarçar a ansiedade.
- Hum... vermelho vivo, mas velado, turvo... cheiro de madeira e vegetal. Seco, áspero, denso... - Fechou os olhos - Embriagante, inevitável, irresistível... "Ana, você vai ser minha, custe o que custar!"
Ela saiu subitamente do enlevo em que estava.
- Henrique! - Gritou.
Maria sorriu lentamente, e seus olhos marejaram.
- Mas ele estava na sua cama até ontem, irmã. É o pai do seu filho! Não seria certo!
- Ele é o rei, irmã. E a quer. Segue o seu coração. Eu aprovo o que você quiser, desde que fiel à sua vontade e não às pressões políticas dos homens.
Uma rajada de vento entrou pela janela, batendo em seu rosto com violência, e ela acordou. O gosto de vinho ainda estava no fundo de sua garganta. A decisão estava tomada. Precisava fazer com que ele soubesse, agora.

Escrevendo

Escrever é tirar um retrato do seu próprio pensamento. Nada menos do que isso. Pode ser mais ou menos fiel a ele, dependendo da sua capacidade de transformá-lo em palavras. Mais ou menos colorido, com contornos de definições diferentes e nitidez variável. Mas, como todo pensamento é livre, muito além do que são os sentimentos e as emoções, as possibilidades são ilimitadas.
Quem tem compromisso com a verdade é o biógrafo. Principalmente se escrevendo sobre si mesmo. Senão, é uma mentira, por definição. O autor de ficção, porém, está livre de amarras.
O pensamento pode visitar uma situação passada, ou algo do presente, passear por possibilidades e desejos, criar mundos que não existem. Descrever loucuras ainda não provadas, casos verídicos e fantasiosos, suposições e desconfianças. Revisitar um clássico, dar mais detalhes sobre outro, criar castelos no ar, ver o que lá não estava, provar do que nunca existirá. E não necessariamente diz algo do que o autor está passando, naquele momento da sua vida. Pode, sim, ser um desabafo, uma manifestação de emoção intensa. Mas pode, também, de propósito, ser uma fuga da realidade.
É mais comum se escrever sobre coisas das quais se tem vivência, assuntos mais conhecidos, e, assim, confortáveis. Mas existem momentos em que quem está criando age como um ator: se coloca no lugar de um personagem, num exercício de empatia, e tenta viver uma vida diferente da sua, para enriquecimento próprio e/ou entertenimento de outros.
Então, tudo o que é escrito foi pensado, mas não necessariamente vivido, no sentido real da palavra. Digo isso para esclarecer as pessoas que podem se identificar com algo que eu escrevo, se ofender ou ver mais do que realmente existe ou existiu. As pessoas das quais eu falo com veracidade (em fatos e sentimentos) são avisadas disso, assim que eu posto. As outras podem se reconhecer em fragmentos aqui e ali, num diálogo, aspecto físico ou situação. Mas certamente fizeram parte de um mosaico criativo, do conjunto de imagens e emoções onde a minha mente passeou, sem muito compromisso, e foi trazido para cá. Se isso acontecer, desculpa alguma coisa que deva ser desculpada. Sinta-se homenageado, por favor.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Doença

Quando dona Hermínia enviuvou, aos 72 anos, as quatro filhas decidiram não tirá-la da casa que havia construído e na qual morava havia 45 anos. Minha amiga Renata, a mais velha, mudou-se para lá, com o marido. Os filhos estavam na faculdade, visitavam pouco os pais devido a distância, e a adaptação foi fácil. A sogra e o genro se entendiam bem, e Renata, por ser dona-de-casa, administrava tudo para a mãe, desde pagar as contas até supermercado, refeições, ordens para a empregada, levá-la ao médico e o que mais surgisse. A senhora vivia contente, fazendo seus sapatinhos de tricô para a caridade, e se encontrava com amigas de vez em quando, para um jogo de buraco. Elogiava sempre a filha, e chamava-a de "meu tesouro".
Após três anos, porém, as coisas começaram a mudar. Aos poucos, Renata notou uma perda de memória na mãe. Conversou com as irmãs, e acharam que era da idade, não havia motivo para preocupação. Na verdade, era a esperança que elas tinham. Mas foi ficando cada vez mais frequente. Ela ía até a cozinha, Renata perguntava se ela precisava de ajuda, ela dizia que não se lembrava por que tinha ido até lá. Voltava para a sala, voltava para a cozinha, dizia que não lembrava oonde estavam os óculos. Renata os achava bem ao lado da poltrona. Depois, o novelo de lã cor-de-rosa. Depois, outro detalhe havia sido esquecido. Aos poucos, começou a deixar de tomar o remédio para pressão alta pela manhã, como sempre fez. Renata colocava numa caixinha com a indicação de segunda a sexta-feira, e ela sempre deu conta, sozinha. Mas começou a esquecer, e, se perguntassem, olhava com estranhamento para a pessoa, e depois dizia "não tenho certeza". Logo parou de escovar os dentes.
Além disso, começou a ficar apática, quieta num canto, conversar menos, reagir de maneira neutra mesmo às notícias mais alegres.
Renata levou-a ao geriatra, que fez todos os testes necessários para descartar outras doenças, e chegou ao diagnóstico: mal de Alzheimer.
Cada filha reagiu de um jeito. Renata primeiro entristeceu-se, depois teve medo do que estava por vir. A segunda, Mônica, tratou de ler o que pudesse na Internet a respeito, e reuniu as quatro para se organizarem. A terceira, Marta, disse que queria assegurar o conforto da mãe, que providenciaria uma cuidadora, quando houvesse a necessidade, e que organizaria os gastos, que elas dividiriam. A quarta, Alessandra, na eterna atitute de bebezinha, só chorava, e disse que concordava com tudo o que fosse decidido.
Eu e Renata já nos víamos com frequência, mas essa situação nos aproximou mais. Ela contava comigo para desabafar, às vezes num café, às vezes num telefonema, mesmo. Cortava o coração escutar a descrição do que estava acontecendo, e fiz algumas visitas a dona Hermínia, mesmo na época em que ela deixou de me reconhecer. Pelo jeito, todos que lhe deviam gratidão viviam borboleteando em volta dela, e enquanto ela pode perceber as presenças das pessoas queridas, curtiu os momentos com alegria. Mas não durou muito, infelizmente.
O que mais impressionou e entristeceu Renata, no início da doença, foi a mudança da expressão do olhar dela. "Eu acho que a alma da pessoa está nos olhos, mesmo. E a alma da minha mãe está abandonando o seu corpo. É como ver uma árvore sendo comida por cupins por dentro, e só ficando a casca, e a essência, a seiva desaparecendo, lá dentro, aos poucos".
E que árvore tinha sido aquela! Dona Hermínia tinha mudado para São Paulo assim que se casou, aos 22 anos, vindo do interior do estado, e deu abrigo para todos os seis irmãos e vários sobrinhos que vieram tentar a vida na capital. Teve um casamento feliz com um homem de gênio difícil, mas coração bom, e enterrou um filho, assassinado a tiros num latrocínio, com 40 anos de idade. E não se entregou. Viveu os lutos de maneira saudável, sem entrar em depressão, como uma bola bem cheia, que bate no chão e quica de volta. Então, ela foi frutífera, frondosa, vistosa, acolhedora, de aparência secular e infinita. Totalmente diferente do que se tornou, com a doença. O que fez mais difícil a situação para a família. Foi, para ela, perder a mãe, sem que ela realmente morresse.
No início, Renata se chocava com as coisas que a mãe falava, quando ficava agressiva. Tentava descobrir se tinha culpa, se merecia aquela explosão. Levava para o lado pessoal, porque ela sempre tinha sido tão coerente, e era a voz, o corpo e os gestos dela. Fui várias vezes nas consultas com as duas, na esperança de que o neurologista conseguisse cconvencê-la de que nada daquilo era pessoal. Não era uma punição, era a evolução da doença, e havia remédios e maneiras menos difíceis de lidar com ela, no dia-a-dia. Por exemplo: Renata e a família tentavam ao máximo manter uma rotina consistente, para não sobressaltá-la, principalmente no final do dia.
Foram particularmente difíceis três situações: Renata foi a primeira filha que dona Hermínia esqueceu. Dizia que ela já estava morta. Renata magoou-se com isso, como se fosse uma indicação de menos apreço. Logo ela, que mais fazia pela mãe, convivia no dia-a-dia. Também ficou chocada quando a mãe começou a exigir "voltar para casa", que aquela não era a dela. No dia em que a mãe disse que as pessoas responsáveis pela TV a cabo estavam mudando a programação para confundi-la, Renata teve uma crise de choro, na minha frente. Como se aquilo tivesse sido uma indicação mais palpável da doença, do que todos os outros sintomas.
Hoje em dia, quatro anos após o diagnóstico, "as abóboras já se acomodaram na carroça", diz ela com um sorriso triste. As quatro formaram um time unido e que funciona bem, junto com os maridos, filhos e cuidadoras. A dona Hermínia teve sorte. São elogiados pelos médicos.
Às vezes, Renata se deixa abater pela situação, e me conta, a sós, o que vai no seu íntimo. Recentemente, a mãe foi hospitalizada com uma infecção urinária, e ela disse que teve uma atitude muito agressiva com o pessoal do hospital. Reconhecia. Exigiu que atendessem logo, fez vários contatos com o médico, se empenhou demais na cura da mãe. E me disse que tem muito medo do dia da morte dela. Tem medo de que, além de sentir tristeza, também vai sentir alívio. Porque a carga vem sendo pesada demais, emocional, fisica e financeiramente. E aí, medo de sentir culpa por ter sentido alívio. Não se permite isso. Sugeri que espere para ver como será, que não tem como prever. Prometi estar com ela nessa hora e dei, sem pressionar, o cartão de uma ótima psicóloga, outra grande amiga minha.

Sentidos

Os meus olhos o adoram.
Adoraram desde a primeira noite.
Difícil controlá-los com você por perto.
Me forço a não buscá-lo, do outro lado da sala.
O medo de ser desmascarada pelos colegas.
Seu perfume me embriaga.
Bem melhor que você esteja longe.
Fica aí, não olha prá cá.
Presta atenção em qualquer coisa.
Divirte-se, conversa, sorri.
Mas não fala muito alto, por favor.
Porque eu adoro a sua voz.
O seu sotaque.
Não quero que você me desperte os outros sentidos.
Não me deixe saborear ou tocar.
Não se aproxime.
O medo do vício é muito grande.
O estrago seria irreversível.
Tenho certeza.
Hoje, por exemplo, a insônia é certa.