sábado, 30 de abril de 2016

Continuação

Empilho o eufemismo
Em palavras poéticas
Que voce não alcançaria
Para embelezar o que na verdade
É saudável pulsão de vida
Quase uma bruxaria

Então escrevo sobre o desejo
A frustração, a saudade
O perfume, a voz, a urgência
Deixo pra conversa no whatsapp
Os palavrões, as risadas
E as promessas de indecência

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Despedida

"Não chora..." - disse ela. "Poderia ter sido pior."
Seguiu: "Eu poderia ter estacionado mais longe todas as manhãs, para passar na frente do seu trabalho. E ter fantasiado que você estava no lobby de propósito para me ver. Que sabia dos meus horários.
Eu poderia ter vivido as minhas histórias tolas duas vezes. Uma quando acontecessem, outra quando as contasse para você. E poderia ter esperado ansiosamente para ser ouvida e saber a sua opinião.
Você poderia me contar filmes para me dar lição de moral, enquanto eu beijava qualquer parte do corpo sua que eu alcançasse.
Eu poderia ter contado várias piadas e ter sido gravada sem querer, rindo.
Você poderia ter lembrado de mim toda vez que visse filhotes de gato e comesse queijadinha.
Você poderia ter babado cada vez que, em público, eu tivesse prendido o meu cabelo, pra provocá-lo. Você poderia ter sentido ciúmes.
Poderia ter sido pior.
Nós poderíamos ter quisto a presença um do outro nos momentos felizes. E principalmente nos tristes. E carregado um aao outro na mente quando os fogos de artifício anunciavam o Ano Novo que me levaria para longe.
Nós poderíamos, realmente, ter amado um ao outro."
Naquele momento ele percebeu que nem mil anos seriam capazes de fazer esquecê-la.

Tá quente, tá frio

Conversa na madrugada
Suor frio
Tira cobertor
Tira coberta
Tira freio
Perde a vergonha

Mas o sono vence...

(E no calor do momento
Esqueci de perguntar
Se estava bem agasalhado)

terça-feira, 26 de abril de 2016

Pele

Branca
De neve
De talco
De palco
De prazeres

Contornos indefinidos
Olhares perdidos
Na liquidez do momento
Na insensatez
Dos quereres

Conta

Proporcionalmente
Contribuí com 90%
E você com 10
Proporcionalmente
Eu nem sabia o que era 2%
Proporcionalmente
Paguei a preço de diamante
O que era ouro dos tolos
Proporcionalmente
Meu pé atingiu 100%
Da sua bunda

Quedinha

Você aí
Do alto do seu trono
Olha para frente e me encara
Sou sua igual
Sou sua

E cai
Cai de boca
Cai por mim
No meu canto de sereia
Cai na minha teia

domingo, 24 de abril de 2016

Gangrena Visceral

A dor do que infarta lá dentro
Do que não vai apodrecer
Morre e não deixa de existir
Ocupa espaço e não vai mais funcionar

É a dor do que não mais lhe pertence
Mas é carregado para sempre
Como lembrança da fragilidade
E de que um dia vai-se o todo

Praia

Ela bem que tentou. Telefonou, mandou mensagem pelo face e whatsapp. Estava descendo para a praia, decidiu em cima da hora. Ele provavelmente estava na roça, de chapéu, cuidando de galinhas e talvez batendo um bolo de fubá maravilhoso. Celular desligado. Será que tinha sinal?
Ela divertiu-se ao máximo e voltou pra casa de madrugada. Quatro horas e meia era uma distância considerável. Sorte que o carro era bom.
E suspirou. Mas o que era um dia a mais para um beijo que estava esperando havia trinta anos?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Pedido no Balcão

Uma paixão, por favor
Uma paixão pra distração
Pra ser consumida aqui mesmo
Pra me ensinar um novo prazer

Pra esquecer o paciente que morreu
E o filho que desobedeceu
Pra fazer rir e pra culpar
Na hora em que a lágrima cair

Uma paixão, por favor
Dessas que marcam sem machucar
Dessas que a gente escreve na alma
E se quer bem pro resto da vida

Longínquo

A vida é areia ao vento
Mosaico de curvas na reta do tempo
Bela por ser imprevisível
Inconstante, volúvel, dinâmica

O que seu coração carrega hoje
Amanhã pode ser nem lembrança
E a sede da sua alma aplaca-se num dia
Para atormentar no seguinte

E a ilusão de controle haverá
De cair por terra e isso assusta e alivia
Quem é que sabe do próximo desenho?
Quem prevê o próximo movimento?

terça-feira, 19 de abril de 2016

Amor

Você é o toque de sanidade na minha loucura
Minha paz, meu oásis, minha doçura
Você é o meu porto seguro após a tormenta
Me refresca, me apazigua, me esquenta

Você é a resposta para perguntas que nunca existiram
O dilúvio de paixão após a seca dilacerante
Por você sou melhor, sou feliz, sou mulher
Sua amiga, seu caminho e sua amante

Trilha Sonora

Ele podia ser bom em várias coisas... Pausa. Reescrevo.
Ele era definitivamente bom em várias coisas, mas em previsão, com certeza, não.
Projetou para o (então) futuro um sofrimento que não houve. E uma amizade que provavelmente também não vai acontecer.
Talvez por me conhecer pouco como pessoa, e ser inocente a respeito da minha religião, a "docontraísmo", chutou: "Quando você ouvir essa música, vai lembrar de mim." E riu. Claramente se divertia. E facilmente, também.
Nem sei que música era. Provavelmente, nem ele. Audição era o sentido menos funcionante em mim, naquele momento.
Mas eu me lembro de uma música que ele tentou cantar, num inglês ruim de dar dó, salva apenas por ele ser afinado. E da música que cantou enquanto tomava banho, se recuperando do pilequinho do churrasco. Eu olhando para o teto, sorrindo e pensando em como ele se distraía facilmente. Como ficava à vontade, como se ninguém estivesse ouvindo.
Mas a "nossa música", na minha cabeça e coração, é provavelmente desconhecida para ele. Ouvi na ida e volta da viagem de 250 km que fiz para estarmos juntos e descrevia bem a situação.
Porque mesmo as coisas vividas a dois são experiências individuais e únicas. E a memória afetiva a gente só verifica após um longo, longo caminho percorrido.

Ilusão de Ótica

Parecia fluido
Água de banhar-se
Mas é duro aos pés
Gelou a alma
Calculando o vôo
Em 3, 2, 1...

Futuro

Um dia vou acordar e estarei
Morta
Certeza que eu tomarei o maior
Susto
E acharei que a vida foi mesmo muito
Curta

Minha alma voará feliz
Leve
Minha memória se misturará ao resto
Todo
E me perderei no brilho do outro
Mundo

(Sabendo que o amor verdadeiro nunca é
Findo)

Ri melhor...

Quarenta meses
Porque quem não conhece champanhe
Delicia-se com água da torneira
Deve ter sido divertido

Agora faz a pior parte
Junta todas as suas forças
E me esquece
(Truco essa porcaria!)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Lágrima

Porque hoje eu preciso chorar... eu vou inventar que é um grande amor que se acaba.
Que eu não vou guardá-lo com carinho no coração. E não vou sorrir toda vez que ouvir o seu nome.
Vou fazer um drama enorme e miar triste em cima do telhado, como se tivesse sido pega de surpresa, e duvidasse da minha capacidade de trocá-lo por outro na próxima esquina.
Porque hoje eu preciso chorar por algo infinitamente mais grave e permanente. E eu prefiro chorar por você.

domingo, 17 de abril de 2016

Platônico

O meu fantasma me assombrou em vida
Ímã que atraía e repelia
Com a mesma força e ao mesmo tempo
Uma catástrofe, eu previa
Me causava arrepios
Me invadia o pensamento

E o destino impiedoso
Seguiu seu curso
Mostrou os porquês
Manifestou o absurdo
E o tempo fez o previsto
O alívio do exorcismo

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Banho

Sempre calculando o próximo passo
Desdenhando da zona de conforto
Tão duramente conquistada

Sempre inspirando fundo
E reunindo forças
Para o próximo pulo - mais alto!

Na arte de ser facilmente feliz
Eternamente agradecida
Sem nunca estar plenamente contente

Desértico

Seua olhos cor de areia
Vida esvaindo-se na ampulheta
Minha garganta seca, porta-agulhas
E um camelo ruminando
A miragem que foi o nosso amor

terça-feira, 12 de abril de 2016

Rua

Hoje, eu estacionei na rua de cima. A nossa rua. Os poucos postes, as várias árvores, as vastas sombras nas quais nos enroscávamos e ríamos, julgando-nos invisíveis e inaudíveis.
Coloquei a mão no tronco forte e áspero da maior, e perguntei se ela se lembrava. "Sim", respondeu, "e eu também daria tudo para ouvir a voz dele mais uma vez."
Saudade enlouquecedora é a que faz a gente conversar com árvores. Telepaticamente, inclusive.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Compasso

Ele me levou pela mão para o meio do salão.
"Se eu soltar, te roubam de mim e eu não te vejo pro resto do baile."
"Não solte! Não quero que me roubem de você."
Abraçada, sussurrei no seu ouvido: "Feche os olhos que eu te faço acordar."

Releitura

Leio as poesias
Em que eu o chamava
E ele não vinha
E me pergunto
"Ele já sabia?"

A Realidade

Dona de uma gula absoluta
Na pia nada
Na cama sutra

Gestação

Desconheço o medo paralisante
E cuido de mim mesma desde que me conheço
Sei do que sou capaz de gerar
E dispenso quem não tolera os meus gritos de parto

Me deslumbro a cada vez que amamento
Adubo meus triunfos com afeto
Sou mãe de mil ideias luminosas
E me materializo em cada uma delas

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Distante

Vai
Mas deixa a sombra
O ar movido pelas asas
O peso dos pezinhos marcado

Vai
Mas leva o gosto
O som das risadas
A dor do adeus

Vai
Mas volta
A ser meu

Desalinhada

Lambo a linha
Entre seu lábio inferior e a pele
Você lê as minhas entrelinhas
Meu dicionário todo aberto pra você

Você escorre em minha mão esquerda
Entre tenar e hipotenar, linha da vida
E alinha meu cabelo num rabo de cavalo
Pra não atrapalhar a visão

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Plano

Não vou me forçar
A não te querer
Prefiro frustração
A vácuo de coração

E se só houver distância
Se o desejo já não se tem
Não vai escapar da minha reza
Minha admiração, meu querer bem

Churrasco

E daí aconteceu de eu ficar com raiva dele na véspera do churrasco. Aquele ao qual eu não tinha intenção de ir.
Mas ele mandar uma foto do sambão rolando solto enquanto meus tímpanos latejavam mais que válvula de tampa de panela de pressão me fez mudar de ideia.
Fui.
Me diverti.
Só não contava com um detalhe: ele estava de chinelo. De cara amarrada, olhei disfarçadamente por baixo da mesa de truco. Pés perfeitos!
Na volta pra casa, parei na farmácia para comprar antiácido. Eu sabia que o tempo amenizaria a minha frustração. Mas ter aqueles pés era imperdoável!

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Truque

Fecho os olhos e memorizo
A beleza do sorriso
Eu o escôo de dentro de mim
Devagarzinho - e deixo-o
No silêncio e com carinho
Em respeito ao seu sono

(Depois não atendo o telefone por três dias
Pra ele não saber que ainda é o meu dono)

Proposital

Mais ou menos planejado
Próximo de ser sincero
Deixando de ser ensaiado
Evoluindo para verdadeiro

Mais olho no olho
Menos pele com pele
Tipo tem mais coisa boa
Meio que não intencional

Na fuga das definições
Um pouco de fusão de nós

Céu

Exconjuro o ensinamento
De que ser feliz é pecado
Porque encontro a minha felicidade nas pessoas
E acho que o Amor é coisa de Deus

Mas os meus amores são vis,
Incompletos, inacabados, pecadores
Aceito a danação eterna
Desde que paguemos as nossas faltas juntos

(Ou, resumindo: "se eu for pro Céu, vou ficar desenturmada")

domingo, 3 de abril de 2016

Difícil

Vou definir "desencontro"
Numa frase concisa
É você não ser nada do que ele quer
E ele ser tudo do que você precisa...

sábado, 2 de abril de 2016

Dona Jô

Quando eu estava no quarto ano da faculdade, tinha que achar um lugar para morar, porque a "minha" república estava sendo desfeita. Vi um anúncio no mural sobre uma viúva que estava alugando um quarto, e liguei. Atendeu alguém falando o nome de uma loja. Achei que era engano e desisti. Na mesma tarde, uma amiga me falou de uma amiga da mãe, que estava alugando um quarto. Era a mesma pessoa. Tinha colocado o telefone da loja em que trabalhava, para preservar a privacidade.
Seu nome é dona Jô, uma das melhores amigas que tenho. Moramos juntas por pouco tempo, porque tive que ceder o meu quarto para a irmã dela, mas nos amamos e mantemos contato. Foi à minha formatura, casamento, velório do tio, batizado da filha, e me influenciou lindamente. Conhece mulher que enviúva e cria os filhos sozinha, dignamente? Desse modelinho.
Quando leio sobre "o que tem que ser", querendo acreditar que existe uma estrutura definida por alguém por algum motivo, eu me lembro dessa história.
Não veio por um caminho, mas veio por outro. Uma das várias figuras femininas fortes da minha vida. Muito necessária. Mandada por Deus. Mesmo com a minha desistência inicial.

Trabalho

O sofrimento é a massa de pão do cuidador. Se estou trabalhando, é inevitável. Sou procurada, na maioria das vezes, devido a ele. E, esdruxulamente, às vezes convido o paciente a comemorar a existência da dor.
Explico.
Metade dos pacientes com entupimento das coronárias têm morte súbita sem qualquer sintoma prévio. Tem gente andando por aí com pressão alta, sem sentir nada. Procurar médico pra quê? "A gente só vai no dentista se o dente doer", eu digo para eles. Não é o certo, mas é o que a maioria faz. Sentir dor ou cansaço aos esforços, palpitações, a famigerada dor na nuca que contestam se é sintoma de pressão alta, e etc, acaba sendo bom.
Precisou de ponte de safena? " Sorte sua. A gente só recauchuta pneu que vale a pena!" Sim. Eu consigo um sorriso no meio do medo, falando essa frase.
Mas o que me marcou nessa manhã foi que, contrariando a minha rotina, celebrei resultados negativos de exames ("negativo" nesses casos é bom, sem doença) e até dei alta pra gente saudável demais para acompanhar comigo.
Umas ilhas de boas notícias são muito bem-vindas. Verificar saúde é tão prazeroso quanto restaurá-la.

Weston

Só entende o estrago de um furacão quem passa por ele. É um monstrengo que se forma em alto mar, monitorizado pelos noticiários da TV muitos dias antes. Mostram um mapa, uma localização e um cone projetando o possível caminho que seguirá.
Você vai dormir. No dia seguinte, ele está mais perto da terra firme, em algumas horas, o cone se afunila, e vc descobre que essa desgraça vai passar em cima da sua casa.
Vivi isso sete vezes, em dois anos.
Daí é aquela correria pro supermercado. Cheguei a ver gente se engalfinhando por prego, água engarrafada, leite em pó. Eu aproveitava a desculpa pra comprar leite condensado, que acabava antes do furacão chegar.
Cobrem-se as janelas com metal ou madeira. Colhem-se os côcos, que viram bolas de canhão, se deixados ali. Quem não recolhe a tradicional cesta de basquete provavelmente acaba tirando-a de cima do carro.
Existem categorias diferentes de furacão, a estrutura da cidade varia (na que eu morava, toda a fiação era subterrânea, então nunca fiquei sem luz - estranho ver no mapa o furacão passando na sua rua), a extensão, etc.
Dentro do furacão, podem ser formados tornados, que são aqueles funis visíveis que carregam vacas, carros, barcos... Mas são poucos.
Cansa ficar preso em casa. Às vezes, a sensação é a de estar dentro de um avião, dentro de uma tempestade, pelo barulho. Mas se você tem três filhos pequenos (dois na fralda) e um marido viajando que não pôde voltar porque o aeroporto está fechado há três dias, provavelmente você vai brincar de roda o tempo todo, e ninguém vai nem se tocar do que está acontecendo. Uno é legal, assistir desenhos... Nessa hora, é melhor companhia de criança, mesmo, bem sem noção.
O pós é cenário de guerra. Casas destelhadas, ruas obstruídas por árvores, às vezes imensas, seculares, que foram arrancadas pela raiz. Só sobrevivem palmeiras, flexíveis e pouco frondosas, que permitem que o vento passe por elas, sem resistência.
Mas o interessante é que é justamente no pós que acontece a maioria das mortes. Por quê? O Fulano desobedece a orientação das autoridades, e sai para avaliar os danos. Fio no chão, na água, é eletrocutado. Paga caro pela ansiedade.
Até a desgraça tem fatos curiosos. Até nessa hora há de haver equilíbrio emocional.

Vivência

Quando eu era criança, ali pelos cinco anos de idade, morava em Santos, bem perto do restaurante em que meu pai trabalhava, chamado Fifty-Fifty. (Meio a meio o quê, não tenho ideia...).
Meu pai era maître-D, e, apesar das pessoas imaginarem como é sofrido ser familiar de médico, por causa de plantões e etc, não sabem que é muito pior para garçon e similares. Eles dormem quando os outros estão acordados, e trabalham na hora em que, supostamente, a família está reunida para comer. Eu me lembro de uma única vez em que saímos para jantar juntos, na época éramos cinco, e fomos todos de calças jeans, rindo, celebrando.
Bom, tudo isso para dizer que estar com o meu pai era um evento muito raro, então ele tinha uma aura mágica. Era um homem fisicamente muito bonito, labioso, simpático, encantador, e ficava especialmente doce no ambiente de trabalho. Nasceu para servir, exímio ator, fazia o freguês se sentir especial. E eu era uma "freguesa", de fato, especial. Única filha, na época.
Então, nas raras vezes em que fui ao Fifty-Fifty, ele me levou a um ambiente com ar-condicionado (imagina a bênção que isso era, em Santos, nos anos 70), e me serviu uma torta de chocolate meio amargo, com recheio de damasco.
Não há nada no mundo com sabor parecido para mim. Misturar chocolate meio amargo com damasco me traz a memória afetiva de estar com ele, o geladinho na pele, o mundo fervendo lá fora, a voz, a atenção, me sentir cuidada, alguém me mostrando o que é bom e eu mereço.
Ao longo da vida, tenho consciência desse tipo de associações que faço, que me permitem viver mais intensamente e reviver, mais à frente, o que acontece de bom. Independente de vir a acontecer de novo, ou de algo ruim ter acontecido depois. A lembrança daquele momento, aquela sensação, aquele sentido despertado são meus e ninguém vai tirar, nunca. A não ser que eu venha a ter algum distúrbio neurológico, bate na madeira, nunca se sabe.
Exemplo mais recente: eu sei que se esculpir fosse um dom para mim, eu reproduziria um rosto de um homem. Tenho a memória tátil dos ossos todos, e da consistência da sua pele, dos tecidos que chegam até eles. Sei o comprimento dos seus cílios e o cheiro do seu queixo. (Sei, sei, isso não influenciaria na escultura).
Isso para mim é prova de um momento bem vivido.A impressão que me causa, o motivo inexplicável de eu já ter tocado tantos rostos, e nenhum ter marcado tanto. E não tem nada de amor, ou paixão, querer isso ou aquilo da pessoa. Simplesmente, por algum motivo, marcou. E não marcaram outros detalhes. Deles eu me lembro, mas com certeza vou esquecer logo, porque são pequenos. Ficou a memória tátil. Do rosto bonito. Uma surpresa boa. Um presente.
E a vida continua, e quando menos eu esperar, vai ter um gosto, um cheiro, uma música, um movimento ou sei lá o quê, novo ou conhecido e visto de outro ângulo, dentro de um contexto maior, bom, que vai fazer meu olho brilhar e me lembrar de como é gostoso estar viva.