terça-feira, 26 de setembro de 2017

Cláudio

Passamos bem uns três dias examinando a boca na frente do espelho. Nem um pequeninho, verdinho pra contar história. Nada na língua, nada nas bochechas. Eu esperava um criadouro de anfíbios em miniatura.
A classe toda já tinha se entediado de nos ver, sentados na escada, esperando os pais, ele no degrau de cima com os joelhos afastados e eu no de baixo, escutando e acreditando nas declarações de amor dele. Afinal de contas, eu era adorável mesmo, a tia Yara tinha dito.
Exigiram um selinho como prova do namoro, e achamos uma boa ideia. Não sentimos nada, óbvio, mas a reação estrondosa e a risada abafada quando a professora voltou pra classe eu não esqueço.
Numa manhã, resolvemos conversar: "E aí! Alguma coisa?" "Não. E vc?" "Também não."
Fiquei aliviada. "Demos sorte. Todo mundo sabe que criança não pode beijar porque dá sapinho na boca."
Eu tinha 5 anos. Ele, 7. Chorou de lágrima quando me mudei de Santos pra Limeira, por causa do emprego do meu pai.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Infinito

Há mil anos eu te conheço
E há mil anos decorei os traços do teu rosto
Há mil anos me escondo dentro da tua vontade
E há mil anos retumbo no teu peito

Há mil anos desisti dos planos
Porque em teus vales e colinas perdi a bússola
Há mil anos me guiam as estrelas dos teus olhos
Me alimentam o nosso riso e os meus gemidos

Há mil anos alcanço a tua mão
Há mil anos beijas as minhas
Há mil anos a eternidade só fará sentido
Com a nossa existência pra nós dois

domingo, 17 de setembro de 2017

Xadrez

Um rei perverso
Uma rainha louca
Dois peões crianças dão-se as mãos
E prometem não se separar
(Quem morre é só velho)
Mas a morte e a separação chegam juntas
E cedo demais

Décadas depois
Ele é bispo rígido
Ela: égua forte (pecado imperdoável)
Ele bate a Bíblia nela
Ela responde com coice

A vida joga com crueldade:
A cada peça seus devidos movimentos
Mas o final do jogo não se sabe

sábado, 9 de setembro de 2017

Meio Termo

Nem tanto ao céu
Nem tanto chão
Não tanto apetite
Nem sobra pão

Nem tão doce
Nem amargurada
Não leve: "uma pluma!"
Mas também não tão pesada

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Coração

Há de se amar para sempre
O que foi amado uma vez
Mesmo que por um momento
Ilusão, encantamento
Mesmo que passe a embriaguez

Há de valer a vida toda
Todo o amor que se fez
Por tesão, por amor, ou carência
Impulso, investimento, indecência
Há de se amar outra vez

(Viva o coração cuja memória é seletiva)

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Realista

Quando eu te quis por inteiro
Você meio que me queria
E a ideia de nós dois
Me parecia tão linda

Agora que você me quer
A ideia é esdrúxula
E quero porque quero
Que deixe de me querer

(Favor providenciar)

sábado, 2 de setembro de 2017

Para a A.

Eu quero o seu brilho nos olhos de volta
Seu sorriso de flores
Seu bem querer jorrando
Seu cuidado excessivo
Seu amor, o seu riso
Que tudo volte ao normal

Eu quero a confiança reestabelecida
No que é bom, no que é vida
Sua energia em boa frequência
O seu canto, sua eloquência
Seu bom humor, sua diferença
Que o bem vença o mal