domingo, 23 de dezembro de 2018

Farsante

No esforço de impressionar alguém, mesmo mentindo, você consegue, na melhor hipótese, admiração indevida. Na pior, inveja e dúvida.
Afeto é outra coisa.
Na pose ensaiada, perda de espontaneidade e dourar de pílulas, você induz, na melhor hipótese, a uma fantasia. Na pior, a idealização irreal e decepção.
Amor é outra coisa.
Nos cálculos de manipulação e emoção artificial, o empenho é grande e o resultado questionável. Na melhor hipótese, você conquista um inocente que vai sofrer. Na pior, é tão manipulado quanto.
Viver plenamente é outra coisa.
No esforço em seduzir sem conexão afetiva e sintonia de intenção, a satisfação é temporária. Na melhor hipótese, tesão passageiro. Na pior, objetificação do sagrado.
Encontro é outra coisa.
E na hora que a realidade cobra, a máscara cai e só resta você, a conta chega. Na melhor das hipóteses, perdão e acolhimento. Na pior, ressentimento insuperável.
Relacionamento saudável é outra coisa.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Sobre o M.

Quando eu o vi
Meu coração murmurou "é isso"
O problema: era o de sempre
(O que não deveria nunca, jamais ter sido)

domingo, 18 de novembro de 2018

J.

Antes do primeiro sol se pôr
Você já tinha sido feito
Pra mim
Eu dançava na ponta dos pés
Fingia não perceber o seu olhar
E cantava "não somos tão diferentes assim"

Comprimia o meu peito contra o seu e contra o muro
Na ponta dos pés
Tinha dó dos seus olhos verdes se fecharem
E de quem tinha o coração parado
Quem nunca mais sentiria isso

Pedia explicação sobre as palavras e você sorria
Disfarçava
Escapulia
"É só uma poesia..."

Antes da primeira lua se escandalizar
Eu já tinha sido feita
Pra você
Você pairava na beira dos meus sonhos
Fingia não querer também
E suspirava "quem sabe numa próxima ?"

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Caldeirão

A minha tataratataravó delatou as inimigas
E cheirou suas cinzas como cocaína
Só não previa que feitiço passa entre gerações
Mas maldade a genética às vezes dilui
(Eu seria sua maior decepção)

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Arteira

A minha bruxaria eu faço quando o paciente chega tenso e vai embora sorrindo.
Quando ele vem ao meu consultório na intenção de formar parceria comigo para melhorar.
Quando me visto de branco e penduro o esteto ao invés de um corvo no ombro.
Tendo visto gente nascer e morrer. Tendo colhido risos e enxugado lágrimas. E derramado muitas, também.
Depois de ter passado 8 anos com medo de nunca mais exercê-la e décadas folheando milhares de páginas. Dissecar cadáveres, manipular rãs e ratos e passar noites em claro.
Quando amigos e familiares me têm como referência na hora em que sou insubstituível.
A minha bruxaria eu faço devendo a tantos professores em quem confiei e colegas e profissionais do time em quem confio.
A minha bruxaria me faz feliz como arte nenhuma outra me faz.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sobre uma tarde chuvosa

Não posso pinçar o amor
Do momento belo
Da doçura e entendimento
Da saúde e encantamento

Pois se escolhi te amar
Se mereces o meu amor
Será teu o meu olhar
Será minha a tua dor

domingo, 14 de outubro de 2018

2015

Quando a luz dos seus olhos me alcançou
Era a de uma estrela já com os dias contados
E nas trajetórias que a vida traçou
Fomos traços paralelos

Troquei os nomes
Troquei as fomes
Errei os alvos
Furei as filas

Hoje me abraça invisível
Em mim descansa a cinza do amor que não queimou
Sua alma sorri paciente em algum lugar
"Arlete, ainda não foi dessa vez"

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Amarelo

O amor é um bálsamo que mesmo a alma mais bruta reconhece quando em contato.
Faz surgir uma inquietação ininterrupta que diz que existe um lugar melhor ao qual se pertence e para o qual se deve voltar.
(Essa é a minha prece de amor.)

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Celebração

Se te encantam borboletas
Flores
Pássaros
Bichos
Crianças
Poesias
Mar
Marés
E praças
Comemore a si mesmo
Existem porque existem
E não para a sua felicidade
(A capacidade de amar é sua)

domingo, 2 de setembro de 2018

Facebook

Lembrem de mim
Sim
Quando tiver café
E também
Sim
Se poesia couber

Lembrem também
Sim
Quando virem
Ouvirem
Sentirem
Um coração
Um tambor
Uma oração

Lembrem de mim
Até sem razão
(Sou carentona mesmo)

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Planos

Vou ali comer um ovo de Páscoa contando os dias pro panetone
Alisar uns pelos de gato e telefonar para a mamãe
Vou ali cobrar uma dívida e mandar um beijinho pro meu pretinho básico
Estender umas roupas no varal e namorar vitrines
Vou ali tomar café com uma amiga e pedir uns exames de rotina
Ser pontual, sorridente e exausta
Vou ali te esquecer
E não volto

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Poeta

Escreve
Como quem cavoca a terra
A semente
O adubo
A folha
A flor

Escreve
Como quem invade a praia
A areia
A vista
O vento
O mar

Escreve
Como quem conquista a moça
O sorriso
O beijo
O despir
O sexo

Escreve
Como quem atinge o máximo
O clímax
O êxtase
O orgasmo
Das palavras

Para o André Ricardo Aguiar
e a Tânia Regina Contreiras

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Minha Terezinha

Teve aquele moço que não entendia
Achava pouca vontade a minha
Não sabia da mania de amor perfeito

Teve o outro muito doido
Que me fazia rir imitando um tambor
E uma noite resolveu não ser engraçado

E teve o outro que era bravo
Dava e reclamava
Eu levantava a sobrancelha, ele chiava
E decidiu que era trabalho demais (nunca pedi nada!)

Vieram e foram
Chegaram e partiram
E ficou a mulher
Que diz que eu sou mais eu
(Que sou eu)

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Maternal

Já deixei de ser médica por um tempo.
Já fui namorada de gente que namorou outras depois.
Sou ex-mulher de cara casado pela segunda vez.
Não sou a única irmã e nem a única filha de ninguém.
Meus amigos me têm e a mais dezenas.
Mas para três seres do mundo sou inigualável, incomparável e insubstituível. Pelo menos tento ser boa nisso...

Três Anos

Eu sei que na sua vaidade
Sem tamanho
Você repudiava a minha pena

Na sua negação da realidade
Involuntária
Segurava a minha mão em condução

Eu sei que no fundo, no fundo
Lamentava
E sonhava com o futuro que não viria

Já era tarde
E a gente não dizia
Conosco, a vida errou a mão

Escolha

Quando acontecer de eu sentir saudades, quero olhar pra trás e ter certeza de que sempre escolhi estar perto de quem amo.
Quando a inapetência chegar, quero lembrar do banquete suntuoso que foi essa minha vida.
Quando a solidão chegar, quero ter perdido a conta de quantos sorrisos eu dei e recebi e de quantas vidas eu toquei com delicadeza.
Quando a fragilidade chegar, que chegue sem trazer sentimento de culpa. Porque erro por ser humana, mas da maldade do meu coração eu fujo com convicção.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Administração

Eu me emociono com gentilezas de trânsito
Vídeos de gatinhos
E declaração de amor de mães
Cada "Deus abençoe" no consultório
Piadas propositais dos filhos
E gente que guarda histórias pra me contar
Não é qualquer maldade que me atinge
Nem qualquer farpa que me entra pela pele
Se a cegueira ao ruim parcialmente me desprotege
Por outro lado, não me estraga a capacidade de ser feliz

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Estrada

Gosto de estar de passagem. Achar tudo muito lindo, mas sentir que não pertenço àquele lugar. Ter âncora leve, não ser presa por objetos, casa, cama, cobertor.
Porque a bagagem eu levo dentro. Peneirada, escolhida a dedo, leve, fresca. Como o vento que vai bater e me levar de novo.

domingo, 22 de julho de 2018

Contato

Em conexão somos gerados
Midação, placenta, cordão umbilical
Ai, quanto choro a primeira separação...
Em contato somos alimentados
Peitos, leite, colo
Receba aqui o meu sorriso desdentado
Em grupos crescemos
Irmãos, primos, escola
Uma hora pertencemos
Noutra não nos identificamos
Mas seja em amor, amizade, trabalho, relações de família ou familiaridade: a necessidade de conexão vem do DNA humano

(Pra todos que encostam em mim - no real e no virtual)

sábado, 14 de julho de 2018

Revezamento

Tem dias de tempestade
E dias de mormaço
Dias de solidão
E dias de abraço

Tem dias de choro
E dias de sereno
Tem o dia intenso
E o dia ameno

Tem dias de batalhas
E dias de descanso
Tem dias de ressaca
E dias de remanso

E assim a vida dá
Tira
Revira
Acorda
Põe pra dormir

Tem dias de querer bem
E outros de querer bem longe

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Nômade

"... Já morei em tanta casa que nem me lembro mais..."
Mentira. Morei em 27 casas, em 8 cidades diferentes.
Mas isso não é o principal. Não pertenço a lugares. Pertenço a pessoas. (Morei com 22).

Amor

Ama-se quando entende-se que tudo passa. Inclusive a paixão.
Que crianças crescem e a adaptação às novas fases é necessária e nem sempre fácil.
Ama-se quando percebe-se que o prazo de validade foi atingido.
Que a fórmula de felicidade é diferente pra cada pessoa.
Ama-se quando aprende-se que filhos não são extensão de nós.
E que tem princípios que não se trocam por salário algum.
Ama-se quem enxerga o outro. Cuida. Acolhe. E deixa ir na hora de ir.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Rio

Toda água que passou carregou moléculas das rochas do fundo.
Eu chorei uns peixes que morreram nadando ao contrário para se reproduzir.
Aceitei a velocidade, o excesso, a escassez.
E vou resistindo enquanto o mundo é mundo

domingo, 10 de junho de 2018

Sobre cicatrizes

O tecido cicatricial substitui o saudável, perdendo a função original. Ele não é inervado, então, nem doer, dói. O que dói é o que está por perto, que às vezes é repuxado por ele. O que dói é o que é vivo.
Existem cicatrizes, porém, que cumprem funções mais importantes do que quando não existiam. Como fazer lembrar, por exemplo.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Fértil

Aos 9 anos eu pari uma mãe capenga para os meus irmãos
Aos 16 anos eu pari uma mãe cuidadora para mim mesma
Aos 22 anos eu pari uma médica para o mundo
Aos 27 anos eu pari uma esposa
Aos 29, 32 e 33 anos eu pari filhos de carne e osso
Aos 43 anos eu pari uma mulher sozinha que escreve poesias
Porque eu não reproduzo: crio sem referências anteriores

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Para Arlene

Tem gente que lamenta tão bonito
Como se cantasse o mar seco no fundo da concha
Como se atravessasse o ferrão da abelha salivando um mel imaginário
Como se hipnotizada pelo vulcão envolvido por um amianto de negação

Como se fosse orquestra o barulho da quebra
E refresco só o final da dor
Com a resignação final da entrega
Como se sofrer fosse prova de amor

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Tristeza

Você...
Tristeza lânguida a escorrer pela face
Um murmúrio da alma que soa a prece
(mas é lamento)

Nesse escoar lento da esperança
Se lança ao mar a minha última embarcação
(Quem sabe a tempestade chegue antes da próxima praia)

Ame

Ame quem está ao alcance
De quem se foi, ame a lembrança
De quem não chegou, ame a possibilidade
De quem passou, ame o eco

Ame o que não deu certo
Ou deixou de dar
Ou nem existiu

Ame o doce, o amargo, o incerto
O invisível
E até o que feriu

Ame a vida, enfim
Um dia ela será finda
Que a sua bagagem de memórias
Seja linda, linda, linda...

sábado, 2 de junho de 2018

Profecia

Que era pra eu viver com você
Seis mil, quatrocentos e cincoenta e dois dias e meio
Três países
Cinco partos
Dois velórios
Sete furacões
Nove moradias
Um natimorto
Oito cirurgias
Dezesseis tornados
Incontáveis viagens
E uma grande mentira
O periquito do realejo não previu

Saudade

A gente aprende a lidar com ausências
Tenta ser feliz com o que se tem
Mas às vezes para pra sentir direito
E vê que saudade existe, também

Às vezes nem é da pessoa
É da sensação de se ter alguém
Porque amar a si mesmo é divino
Mas amar ao outro também

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Atos

Choro mais do que fico triste
E amo mais do que abraço o que me encanta
Calculo mais do que controlo depois
E sirvo mais do que o que me vem de graça

Construo com vãos se faltar tijolos
E chamo de arquitetura imposta pela vida
Carrego fantasmas presos em meus porões
E levanto a âncora quantas vezes o meu coração mandar

sábado, 26 de maio de 2018

Rosa

Linda, pura, casta
Durou o tempo pré determinado
Enfeitou, encantou, perfumou
Tantos predicados a ela dados
A lindeza
A pureza
A castidade
De quem não tem livre arbítrio

domingo, 20 de maio de 2018

Beatriz

O seu olhar me transforma em tudo o que eu quero ser
Benevolente, paciente, sábia
Me encanta, me adoça, me enleva, me eleva

O seu olhar me deseja tudo o que eu quero pra você
O real, transparente, palpável, condizente
Com tudo o que eu vejo em você

E tudo o que você vê em mim
Todo amor verdadeiro que pode existir no mundo

terça-feira, 15 de maio de 2018

Imprevisível

Às vezes, você morre na praia
Ou nada, nada, nada e... nada
Amigo, a vida tem disso

Uma coincidência o coloca numa emboscada
Um golpe de sorte a tira dela
Amigo, a vida tem disso

Pede e não recebe
Ganha o que nunca pediu
Sofre, reza, sofre o dobro
Trilha picada que não previu

Não há lógica ou controle
Respostas fogem
Dúvidas chegam

Fechar os olhos
Sair dos trilhos
Abraçar o inesperado
Encontrar caminhos

Amigo, a vida é isso

sábado, 5 de maio de 2018

Nome aos Bois

Às vezes a gente não faz amor
Faz carinho, amizade, respeito
Faz tesão, química
Mas sexo é toda vez!

domingo, 22 de abril de 2018

Manhã fria de abril

Eu sei de desamor. Aprendi vivendo.
Sei que você pode deixar de existir para uma pessoa quando não preenche o propósito que ela definiu para você.
Eu sei de despreparo. Testemunhei de perto.
Quem não cuida de si mesmo, não cultiva o bem estar, não é de construção não sabe amar.
Amar.
Eu não sei de amor.
Porque eu amo porque sim

terça-feira, 10 de abril de 2018

Pingos nos is

Bem sei
Que só me olha pra conferir estar sendo olhado

Bem sei
Que me reconhece borboleta
Na sua colmeia entediante

Bem sei
Que manter distância é o melhor a fazer
(Mais seguro pros dois)

domingo, 1 de abril de 2018

Frustração

Eu queria saber falar de afeto
Com distanciamento científico
Entender a sede, a urgência, o vácuo
Dos corações insaciáveis

Eu queria dissecar uma alma
Como já fiz com um corpo
Entender a dor, a busca, a desintegração
Depois do inesperado abandono

Eu queria entender de diferenças
De papéis que se invertem
De gente que sente prazer em causar dor

Eu queria ter respostas
Ser capaz de muitas outras perguntas
Eu só queria que fizesse sentido

quarta-feira, 21 de março de 2018

Dano

Corta
Carne
Sangra
Pica
Talha
Estraga
Danifica

Recupera
Granula
Fecha
Sara

(Nada dura para sempre)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Estranhamento

O barro de que fui feita
Tinha cinco tipos diferentes de argila
Um pózinho de ouro
E um analgésico intrínseco

Olho os ossos friáveis do meu pai
Que só existem sob olhares de plateia
E penso que não tem como
Eu ter saído dessa costela

Vejo o caos organizado da minha mãe
Planetas desalinhados e estrelas explodindo
E percebo que essa via láctea
Não foi de onde acabei me nutrindo

Observo meus irmãos e seus quereres
Tantas decisões, tão diferentes
Nossas hélices nem tão distantes
Nossos céus tão divergentes

Concluo que fizemos nossa história
Convivemos, aprendemos, adquirimos memória
Mas pertencimento é sentimento interno
E a gente vive é o agora